Vício Frenético (1992), de Abel Ferrara | Crítica

Cinema Marginal
3 min readAug 24, 2021

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por Almir Basílio

A tradução do título original para o português destaca a característica mais fundamental do protagonista, mas oculta o que torna impactante a percepção desse vício durante o filme: o fato desse policial ser absolutamente o contrário do que deveria, não ser virtuoso em nada que faz — tanto em sua profissão quanto em sua posição como ser humano.

O título “Vício Frenético” pode parecer um convite a mais um filme de farra (dos que, quando não romantizam o vício em drogas, bebida ou jogos, ao menos o apresentam só como uma característica secundária, pouco digna de nota), dinâmico, excitante, que transmite por suas imagens o êxtase sentido pelos usuários. Não é disso que o filme de Abel Ferrara trata, assim como também não é o oposto (uma mensagem moralista sobre como vícios são ruins). Entre esses dois caminhos ele segue o mais difícil e o que melhor se encaixa com sua falta de pudor característica já demonstrada em filmes anteriores: mostrar explicitamente as últimas consequências dos problemas sem se colocar como um mentor a ensinar como lidar com eles.

Nesse sentido, os momentos mais explícitos não o são porque algo gráfico foi mostrado. Cenas de sexo, violência, consumo de drogas, que em outro filme de plot similar poderiam ser adornadas em uma estética convidativa, se tornam repulsivas em seus contextos porque o diretor resolve deixá-las correrem até o limite, até o ponto em que as situações representadas se mostram tão degradantes quanto seriam na realidade — e ficam piores ainda quando invadem cenas onde não seria de “bom tom” aparecerem. É essa a lógica do filme, similar à lógica dos vícios na vida do personagem de Harvey Keitel: em uma cena, a primeira, ele deixa os filhos na escola, e, assim que eles se afastam do carro, ele tira cocaína do bolso e cheira, na frente da escola; em outra, ele vai a uma cena do crime e logo ignora a investigação pra comentar sobre uma aposta. Contrastes desse tipo são recorrentes, entre o que acontece em uma cena (e o sentimento referente a ela, geralmente desagradável) e a seguinte, na qual o sentimento da anterior continua reverberando apesar da resistência natural em aceitar que ele existe em um novo contexto, menos repugnante.

Esta ser a lógica da vida do protagonista, cuja existência acaba tornando-se o próprio vício descontrolado, mas não a de quem assiste gera uma vontade inevitável de se afastar daquilo que é mostrado, que afinal só é possível quando o filme acaba. A sobriedade do público (nunca colocado em uma posição de ter a experiência frenética do protagonista, mas sim na posição do observador consciente) segue sendo agredida pelos close-ups durante a performance estranha e brilhante de Harvey Keitel, sobretudo pelos planos longos, e assim o filme segue violando símbolos sagrados (não só a religião, mas também a família, a lei, e o que elas deveriam representar) e os sentimentos usualmente projetados neles.

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