Vidro (2019), de M. Night Shyamalan | Crítica

Cinema Marginal
7 min readAug 1, 2021

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por Daniel Fonseca

O amadurecimento de Manoj Shyamalan

Mantendo suas marcas características e tratando de temas recorrentes dentro de sua filmografia, o cineasta de ascendência indiana faz seu filme mais maduro um estudo sobre a figura do herói.

M. Night Shyamalan foi um cineasta que começou muito bem sua carreira. O Sexto Sentido (1999), seu primeiro longa feito para um estúdio grande, logrou de cara 6 indicações ao Oscar, sendo uma delas para o próprio diretor. Após isso, sua próxima obra seria Corpo Fechado (2000), que apresentaria uma visão diferente para a época sobre o universo de super-heróis ter potencial para ser adaptado dos quadrinhos para o cinema, sendo esse o primeiro filme da planejada trilogia do indiano. O filme do super-herói inquebrável mostrou que Shyamalan estava dois passos à frente de todos nós. Além de mostrar e adaptar o gênero de super-herói das HQs para as telas, Manoj ainda quebra com a convenção da idealização das figuras heróicas e trabalha em cima de arquétipos de modo a deixá-los cada vez mais próximos da realidade, fortalecendo sua visão sobre a fé, sempre presente em seus longas.

Assim, o diretor acabou se consagrando de modo meteórico pelo seu formalismo e pela sua compreensão tanto da infância quanto da inocência, o que lhe rendeu comparações com grandes diretores como Alfred Hitchcock e Steven Spielberg; sendo a influência de ambos muitíssimo notável, principalmente em Sinais (2002). Como todo grande cineasta, o público marcou Night como sendo um mago das surpresas e um “novo Spielberg”, o que, daqui para frente, o faria refém do seu próprio estilo e o conduziria a uma fase mais baixa em sua carreira em questão de sucesso de bilheteria e de crítica num geral.

Em sua fase mais experimental e após romper com sua marca mais característica do passado (o dito plot-twist “inteligente”), o cineasta fez A Dama na Água (2006), o que talvez seja um dos filmes mais egocêntricos que eu já vi. As marcas autorais do indiano já ficavam explícitas anteriormente e sempre acabavam chamando a atenção para ele, porém nesse estágio de sua carreira seus filmes foram ficando cada vez mais literais, com um culto notável para seu “talento incompreendido” de cineasta.

Depois de dois filmes mais experimentais e dois filmes comissionados, o cineasta faz sua volta triunfal com A Visita (2015), obra que marca o início de seu amadurecimento. Foi com esse longa que o indiano fechou com a Blumhouse e começou a fazer o que ele sabe de melhor: terror e suspense, algo perfeito para ele, visto que agora trabalharia com uma produtora que dá liberdade criativa o suficiente para experimentar e trabalhar do jeito que Night prefere. Eu diria que essa parceria foi a melhor coisa que aconteceu na carreira de Shyamalan. É na colaboração com Jason Blum, que é fundador e CEO da Blumhouse, que o diretor também faz Fragmentado (2016), filme que avisa ao público que o universo de super-heróis iniciado por Night em 2000 seria sim uma trilogia.

Shyamalan e Jason Blum

Vidro é, na minha visão, o filme mais poderoso e maduro de M. Night Shyamalan e é aqui que ele consolida suas marcas mais características enquanto volta a tratar dos principais temas de sua filmografia. É o longa do cineasta que melhor explicita as contradições entre herói e vilão, ciência e fé e evidência e metafísica, tudo isso sendo feito a partir de uma ambiguidade possibilitadora que não apenas “engana” o espectador, mas o faz sentir e acreditar no que ele achar melhor. Essa ambiguidade do filme não é simplesmente consolidada pelo diretor através de seus antigos planos-sequências (que em seus filmes anteriores me pareciam ser mais ego do que um recurso propriamente dito) com a câmera focando quase tudo na cena, mas sim através de composições sugestivas e, ao mesmo tempo, flutuantes e obscuras. As cenas podem ser tanto espetacularizações da realidade quanto a não idealização desse mundo quase verossímil em que se passa a trama. Nos mantemos sempre caminhando nessa linha tênue entre a fascinação pelo sobrenatural e a dúvida pelo real.

Logo no início do filme nos deparamos com o personagem David Dunn (Bruce Willis), protagonista de Corpo Fechado (2000). Através de pequenos trajetos, em que a câmera o segue, e o take característico em que Shyamalan filma o rosto do ator num close com baixa profundidade de campo conseguimos deduzir a situação que nosso herói passa e a desolação enfrentada por ele. É a partir da relação inicial entre Dunn e seu filho, filmada de maneira a ressaltar toda a parceria entre os dois personagens e a crença que o jovem tinha de seu pai ser um super-herói é que nos identificamos primeiramente. Afinal, quem nunca foi a criança a idealizar seu pai como tendo super-poderes?

Além disso, os planos das cenas em que Dunn usa seus poderes são filmados de maneira a exaltar os feitos do nosso herói em seu máximo senso de retidão e integridade. Usando uma capa de chuva verde, Bruce Willis me impressionou mais que quaisquer um dos protagonistas de filmes de super-heróis pertencentes à franquias maiores lançados nos últimos 6 ou 7 anos. E é aqui que está a força desse universo criado por Shyamalan, o mundo é ao mesmo tempo verossímil e fantasioso. Ideal e real coexistem e se retroalimentam.

Desse modo, a verossimilhança é dosada da maneira surpreendentemente precisa pelo diretor. Mesmo após dois filmes da trilogia, ainda chegamos a duvidar tanto do potencial dos três protagonistas e dos seus feitos quanto colocar o nosso mundo pós-moderno e desmistificado em xeque quanto às suas verdades. Shyamalan é um homem de fé. É corajosa a forma como o indiano desafia a ciência e consegue igualá-la a quaisquer outras simples descrições da realidade. O que seria a ciência senão, em essência, uma descrição provável do concreto? É a partir dessa essência que Night carrega seu filme e nos deixa, a cada plano que compõe, mais em dúvida do que acreditar.

O longa é praticamente um estudo sobre arquétipos e as relações simbólicas que o homem, desde sempre, teve com o mundo ao seu redor e faz, juntamente com Fragmentado (2016), a apresentação de uma nova visão da fé em seu lado negativo, representado por todas as 24 personalidades interpretadas por James McAvoy e sua crença da penitência dos puros. A metafísica não se manifesta aqui apenas individualmente, mas envolve terceiros.

Ainda sobre Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), o suposto nêmesis de David Dunn, é instigante como o diretor consegue tornar um espetáculo as diferentes personagens interpretadas em um só corpo por McAvoy sem que isso pareça apenas um gimmick como qualquer outro utilizado por diretores para apelar para premiações. Na minha experiência, me senti completamente cativado por todas aquelas mudanças bruscas de persona dentro de um corpo que os une em entidade. Boa parte desse espetáculo é concretizado pelo diretor através de sua marca característica já citada anteriormente de filmar closes em baixa profundidade de campo. A colaboração do ator britânico com o diretor de ascendência indiana aqui cresce ainda mais nesta sequência.

Assim como em outras obras do cineasta, Vidro é um filme autoconsciente, sendo essa uma das características mais marcantes do autor pelo menos em suas produções mais recentes. Toda a consciência metalinguística das personagens tanto de Samuel L. Jackson quanto de Charlayne Woodard homenageiam a mídia dos gibis ao mesmo tempo em que prestam tributo ao plot do primeiro filme dessa trilogia. Inclusive, é necessário ressaltar que Night hoje em dia é um dos melhores cineastas que compreende a metalinguagem e como colocá-la a favor de suas obras. Existe melhor maneira de se estudar a relação do homem com seus símbolos e consigo mesmo através de arquétipos do que colocando os espectadores dentro deste jogo a partir dos recursos que falam da própria linguagem? Eu creio que não. Para mim, aqui está uma das maiores genialidades do longa.

Além de nos colocar no filme a partir disso, o diretor ainda consegue nos fazer imergir ainda mais em sua obra a partir de seus poderosos coadjuvantes. Assim como já havia mencionado anteriormente, a relação entre David Dunn e seu filho seguem moldes tradicionais, conseguimos nos ver na tela a partir daquela idealização. Da mesma forma, com Kevin Wendell e Casey Cooke (Anya Taylor-Joy), a relação beira uma Síndrome de Estocolmo, mas a ligação entre duas vítimas de abuso se retroalimenta enquanto um dá suporte a outro. Para finalizar, creio que a relação mais poderosa (e que coroa o final do filme) é entre Elijah Price (ou o Mr. Glass) e sua mãe. A busca por um lugar no mundo por alguém que tem, claramente, sua fraqueza mais explícita que seu poder, apesar de ambas as coisas serem qualidades indissociáveis, cativa e mostra toda a força que o universo de quadrinhos pode ter na realidade, assim como a fé.

Vidro é o filme mais maduro de M. Night Shyamalan. É aqui que o cineasta aprimora suas características mais marcantes, trabalha com a renovação do seu estilo, deixa para trás sua relação de refém com suas antigas marcas assim como seu prejudicial ego e nos mostra através da metafísica e da fé sua visão mais complexa sobre o mundo e sobre o ser humano.

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