Obsessão pelo método: o suspense policial de David Fincher

Ensaio sobre o estilo do suspense policial de David Fincher

Cinema Marginal
7 min readJan 29, 2024

por Almir Basilio

Nota: O presente texto é o primeiro de dois ensaios críticos a serem lançados nesta semana no Cinema Marginal, ambos tratando da obra de David Fincher. A decisão de publicar tais escritos em sequência se deu a partir da percepção da discrepância do valor dado à obra do diretor entre cada um dos autores desta humilde página. Motivados pelo recente lançamento de O Assassino (2023), nos propusemos a avaliar a filmografia do realizador ianque, mas agora à luz do que sua última produção pôde deixar evidente.

Trecho de Zodíaco (2007)

It occurs to me, that “the moment,” when it’s time to act, is not when my risk is greatest. The real problems arise in the days, hours and minutes leading up to the task, and the minutes, hours and days after. Eliminating risk comes down to preparation, attention to detail, redundancies… redundancies… and redundancies. Leave nothing for the elves, with their tweezers, forensic baggies, and DNA kits. And avoid being seen. Which is impossible in the 21st Century… so at least avoid being memorable.
- Monólogo inicial de O Assassino (2023)

The Killer traz mais um alter ego do Fincher: alguém obcecado com os procedimentos que precedem o crime e indiferente à moral envolvida no assassinato. Em Zodíaco (2007), a mesma lógica se aplica ao cartunista leigo que se envolve na caçada ao serial-killer só porque gosta de quebra-cabeças: ele não quer descobrir quem é o Assassino do Zodíaco porque é sua obrigação profissional, nem porque algum conhecido seu foi afetado ou porque sua família está em perigo; o puro fascínio pelo crime que o instiga se torna uma obsessão a tal ponto que ele arrisca sua vida ao confrontar os suspeitos e negligencia sua esposa e filhos — tudo isso pra ter como única recompensa a possível satisfação da sua curiosidade. Em Millenium — Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011), o protagonista Mikael Blomkvist progressivamente deixa o instinto de preservar sua integridade de lado em função da possibilidade de solucionar o mistério. Diferentemente do personagem anterior, Mikael tem um interesse pessoal (e financeiro) na solução do caso, de modo que, novamente, o que o leva a se empenhar tanto na investigação não é o “dever ético” de punir um assassino — essa motivação é atribuída a Lisbeth Salander, sua assistente que sofreu violências similares às vítimas do assassino.

O protagonista de O Assassino (2023), interpretado por Michael Fassbender.

Tal como seus protagonistas, a câmera do Fincher é guiada, antes de qualquer coisa, pelo fascínio em relação ao mistério, à performance dos suspeitos e também a todo o entretenimento e suspense que pode surgir daí. A moral envolvida é secundária: nunca deixa de ser um subtexto possível pra se tornar a razão de ser daquela obra. Importa menos julgar o assassinato do que mostrar o método do assassino. Não é por acaso que dá pra contar nos dedos os momentos em que parece existir um ser humano por trás da câmera nos suspenses policiais do diretor. Quase sempre a cena parece filmada por um autômato, programado pra acompanhar mecanicamente os movimentos dos personagens enquanto permanece invisível, pra seguir de forma passiva os caminhos desenhados pelos rumos da história, sem chamar atenção pra si. São raríssimos os artifícios de estilo pra impor alguma moral às imagens, porque o que lhe interessa são os procedimentos, o método, e também a performance.

Garota Exemplar (2014) é o melhor exemplo de como a performance é o grande ponto de interesse do diretor. A moralidade nas ações condenáveis de Nick e Amy é irrelevante nesse universo de aparências que eles estão inseridos — tão irrelevante que beira o ridículo. Parte desse efeito meio absurdo do filme surge porque, ao manter a caracterização sóbria que permeia a maioria dos personagens do diretor (sejam eles inocentes ou autores dos crimes mais hediondos) também para Amy e Nick, cria-se uma quebra de expectativa: nas cenas em que a maioria dos diretores escolheria criar uma caricatura quase expressionista em torno de Nick (filmando-o com convenções que normalmente o público associa a vilões, por exemplo) pra enfatizar como ele é escroto, Fincher prefere filmá-lo com a mesma sobriedade que filma a irmã de Nick, o advogado, os policiais e a própria Amy. Sendo os protagonistas indivíduos que baseiam sua existência na manutenção de determinada aparência perante os outros, Fincher se adapta a isso da mesma forma que sempre se adapta segundo as intenções de qualquer personagem, independente de quem sejam.

Ben Affleck como Nick Dunne em Garota Exemplar (2014)

Essa postura de não tornar a moral do filme sua principal razão de ser, rara no cinema de estúdio contemporâneo e raríssima pra diretores assumidamente pós-modernos como o Fincher, tem algumas implicações difíceis de lidar (que, em parte, aparecem através da metalinguagem de O Assassino) mas não pode ser confundida com covardia em relação às implicações morais do que é mostrado no filme. Caso mais exemplar é Millenium, cujo subtexto, ligado a feminicídio e abuso sexual, é mais delicado e depende de mais cuidado na abordagem pra não beirar a abjeção. Ao contrário de diretores de auto-proclamados “filmes socialmente importantes” (que filmam com tal grandiloquência que parecem comemorar que um problema social existe porque assim podem ter o prazer de denunciá-lo), Fincher de certa forma reconhece que seu estilo sóbrio é incapaz de revelar a raiz do problema que aborda, então novamente se limita a não ultrapassar seu aspecto superficial necessário para a construção do suspense; se limita a seguir os caminhos dos personagens, de modo que é da agência deles que parte qualquer tipo de avaliação em relação ao que ocorre em cena, não da câmera de Fincher (daí o papel de Lisbeth no filme).

Millenium — Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011)

Esse estilo característico de seus thrillers foi sendo aperfeiçoado com o passar dos anos, tanto que Seven (1997), The Game (1997) e principalmente Clube da Luta (1999) tem firulas e afetações que não mais tem lugar em seus últimos filmes. Marco definitivo dessa evolução é Zodíaco, de 2007, lançado após um hiato de cinco anos; depois disso, Fincher consegue uma consistência admirável: mesmo que Zodíaco tenha sido mal sucedido nas bilheterias, ele mantém a mesma abordagem em seu suspense policial seguinte, Millenium (2011). Este último foi pensado como o começo de uma trilogia, que, apesar da esperança que o diretor nutriu até 2014, nunca chegou a ser realizada porque o lucro gerado pelo primeiro filme não atingiu as expectativas do estúdio¹. Sua experiência com fracassos comerciais que impedem a continuidade de projetos criativos não para por aí, já que sua série Mindhunter (2017–2019) também foi cancelada.

E aí entra o surpreendente outro lado do alter ego de Fincher em O Assassino — que nos é revelado como uma surpresa quando o personagem título falha miseravelmente em sua missão. Ambos são obcecados em atingir a perfeição ao materializarem seus métodos, como já dito. No trecho da epígrafe deste texto, parte do monólogo inicial desse filme, o protagonista e Fincher se confundem, mas o mais interessante é que depois de toda aquela preparação interminável o personagem erra o tiro. Mais tarde no filme, ele erra mais uma vez, e depois erra de novo. A questão que Fincher parece lidar mais frontalmente nesse filme é que a obsessão pelo método e todas as redundâncias do processo não impedem o fracasso — pelo contrário, por vezes até tornam o fracasso mais risível. E ao falar dos insucessos de Fincher não me refiro a questões comerciais (embora entendo que isso seja objeto de reflexões do diretor) mas sim às implicações mais difíceis de lidar em seu estilo. De que adianta fazer dezenas de takes para filmar um plano de pouquíssimos segundos se, ao fim, seu filme vai acabar sendo amplamente mal interpretado e apropriado pela extrema direita?² Pode ser esse o preço de não abdicar da passividade característica de seu estilo, que, lá em 1999, ano de lançamento de Clube da Luta, era ainda inconsistente e pouco refinado. O fato de que, em O Assassino, Fincher avalia criticamente seu retrospecto e, ao mesmo tempo, não abre mão do estilo que predominou em seus últimos thrillers policiais, mostra que sua grande questão interna não é duvidar da eficácia seu método, mas sim dar continuidade ao longo processo de lapidação que vem desde Zodíaco.

¹ “I think because it [Sony] already has spent millions of dollars on the rights and the script so it will result in something. The script that we now have a huge potential, I can reveal as much as it is extremely different from the book.” — Citação de Fincher a respeito do andamento da sequência de Millenium, em entrevista de 2014. Trecho recuperado do site Cinemablend

² “It’s impossible for me to imagine that people don’t understand that Tyler Durden is a negative influence. (…) People who can’t understand that, I don’t know how to respond and I don’t know how to help them.” Fincher em entrevista ao The Guardian, 2023.

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