O maneirismo de fachada do terror contemporâneo

Cinema Marginal
6 min readJan 2, 2023

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por Almir Basílio

Last Night in Soho (2021)

Vertigo foi lançado em 1958. Quase 20 anos depois, De Palma lançaria Obsession, sua “versão” do filme de Hitchcock. A um olhar desatento, tal versão pode parecer algum tipo de plágio — mas a questão é que De Palma sabia que filmar Vertigo em 1958 era uma coisa, outra totalmente diferente seria fazê-lo em 1976. Outros diretores, como Leos Carax e o próprio De Palma, sobretudo nos anos 80, tinham a consciência de que não era possível simplesmente repetir um estilo de décadas atrás sem ter suas anacrônicas intenções esmagadas pelo peso do tempo. Eles tomaram tal consciência como mote de alguns filmes e produziram obras que se encaixaram em um momento da evolução da linguagem cinematográfica normalmente chamado de maneirismo.

Dario Argento realizou algumas de suas obras mais icônicas, como Suspiria, antes dos anos 80. Mais de 40 anos depois do filme de 1977, Edgar Wright lança Last Night in Soho — e a última coisa que este diretor demonstra ter é consciência do peso da história que paira sobre sua tentativa de imitação. Portanto, o resultado nunca é capaz de penetrar no que representa a obra de Argento. A “homenagem” se limita a conceber Suspiria apenas como uma grife, apreendendo nada além de seus aspectos mais evidentes e superficiais: um filme de belas cores, cheio de luzes, com um enredo macabro… a “consciência” que Last Night in Soho expressa é que basta fazer algo parecido com o filme italiano que o impacto será igual, mesmo sobre uma audiência de 2021.

Há uma tendência clara no cinema contemporâneo de terror, que de alguma forma (bem inadequada) poderia ser classificada como maneirismo — mas não trata-se nem de longe da mesma proposta daqueles maneiristas dos anos 80 de tentar compreender o momento histórico em que o cinema se encontra e seus contrastes com um momento histórico anterior; esse “maneirismo” (várias aspas aqui) no terror atual trata-se apenas tentar repetir o estilo de certos filmes como se eles tivessem sido lançados há dias e não há décadas. Além do já citado filme de Wright, cabe perfeitamente citar X, que referencia O Massacre da Serra Elétrica (1974); Maligno, que referencia o giallo no geral; e também todo um conjunto de séries e filmes que, indo na onda de Stranger Things, se escoram em uma nostalgia dos anos 80.

Maligno (2021)

Mesmo nos melhores casos, como Maligno (e o objetivo aqui não é detratar esse ou aquele filme, mas sim destacar um aspecto em comum), aquela consciência característica de De Palma está ausente, de modo que a apropriação que James Wan faz do giallo em seu filme, por exemplo, parece se limitar a ser uma reação à obsessão por realismo do cinema contemporâneo, mas pouco mais que isso. Já nos piores casos, a imitação e o apelo à nostalgia se revelam como pura imaturidade, como é o caso de Last Night in Soho. Imaturidade esta que pode ser simbolizada perfeitamente por uma cena de Obsession em que, de repente, uma personagem criança é interpretada por uma atriz adulta: o choque e desconforto que essa cena motiva é o choque de perceber que a inocência de épocas passadas já não existe; que, a essa altura, qualquer tentativa de repetir o impacto primeiro que obras clássicas geraram se limita a ser uma perversão daquilo que originalmente foi realizado. O que falta para que esse “manerismo de fachada” atual adquira alguma riqueza e se torne algo além de uma imitação barata que toma emprestado obras clássicas pra usar de decalque, é perceber essa limitação.

Se, como dito anteriormente, esses filmes contemporâneos citados não expressam (porque seus realizadores não tem) a consciência madura que torna o maneirismo de De Palma, Carax e outros algo tão rico que os coloca em um ponto chave na evolução da mise en scène¹, diretores como Ti West e Edgar Wright expressam outro tipo de consciência que é impossível de ignorar: de que eles só são capazes encarar as obras que referenciam através da ironia. É o caso de X, que assume com gosto um ar de paródia que o leva a ser quase sempre encarado com humor e não com a seriedade com a qual seria encarado um O Massacre da Serra Elétrica. Como quem diz “se é ruim, é ruim de propósito, não leve a sério e assim vai perceber que o filme é bom”. Cabe pensar até que ponto essa “autoconsciência” não é um refúgio (ao invés de uma escolha criativa) para um diretor com uma incapacidade crônica de analisar profundamente o momento histórico em que se encontra e representar isso em um filme; até que ponto rir do filme não é uma aceitação passiva de que isso é o máximo que podemos almejar enquanto apreciadores de cinema hoje?

X (2022)

Essa suposta autoconsciência não é algo novo ou exclusivo da atualidade²: no cinema brasileiro até o advento do Cinema Novo, a meta de grande parte da produção foi (tentar) imitar o cinema dos EUA, o modelo dominante. Mas alguns filmes pareciam ter certa consciência da impossibilidade de tal proposta e se rendiam à paródia: Matar ou morrer (High Noon) virava Matar ou Correr, entre outros exemplos que se escoravam no humor como forma de driblar a diferença evidente de qualidade (porém sem o posicionamento crítico característico do cinema marginal, por exemplo, que demonstra como a “avacalhação” de chanchadas como Matar ou Correr é muito diferente em significado da avacalhação realizada por Sganzerla). A questão, porém, é que a aparente degradação de um modelo tido como o ideal acaba se tornando uma “autodegradação”: nas palavras de Bernardet, o público ri desses filmes como forma de aliviar “o complexo de inferioridade de um público/povo que se despreza quando se compara aos países industrializados”³. Essa característica de um cinema subdesenvolvido obviamente não pode ser generalizada nos mesmos termos para o cinema dos EUA: no caso deles, os realizadores fazem parte do país industrializado e desenvolvido; ao que, então, eles e o público se comparam e se inferiorizam? O complexo de inferioridade (e o rir de si mesmo como forma de “reagir” contra ele) do cinema de terror norte-americano contemporâneo existe, mas nesse caso se dá em relação ao cinema de seu próprio país que foi realizado do passado.

Dessa vez citando Paulo Emílio: no caso do cinema brasileiro, “parodiar não é combater, mas debater-se no subdesenvolvimento”. No caso do cinema de terror contemporâneo, parodiar também não é combater, mas debater-se no baixo nível do cinema de estúdio. É algo pior do que a compreensível incapacidade de diretores atuais de fazer algo relevante como aquilo que os diretores brilhantes do passado fizeram, é, na verdade, a incapacidade de entender o que tornava aqueles diretores brilhantes.

¹ Como colocado por Luiz Carlos Oliveira Jr. em seu livro A Mise En Scène No Cinema — Do Clássico Ao Cinema De Fluxo.
² Toda a análise deste parágrafo a respeito da chanchada brasileira dos anos 50 (com a qual foi tracei um paralelo com o terror contemporâneo) não foi feita por mim, e aqui a credito totalmente ao crítico Jean-Claude Bernardet, que na obra Cinema brasileiro: Propostas para uma história (Edição de 2009, da Cia. das Letras) destrincha brilhantemente todas as questões referentes ao contexto brasileiro.
³ Citação da página 117 do livro de Bernardet mencionado na nota anterior.
⁴ Citação indireta de Paulo Emílio feita por Bernardet na página 118 do mesmo livro citado.

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