O Homem de Aran (1934), de Robert Flaherty | Crítica

Cinema Marginal
6 min readJan 13, 2023

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por Daniel Dantas

Tendência cuja gênese se faz presente em Moana (1926), a presença do documentarista no espaço não afeta o que está sendo filmado. O cinema tem uma vocação muito particular para a farsa — caso contrário, para que serviria o recurso da montagem? — e é com Flaherty nos Estados Unidos e com Vertov na União Soviética que essa arte passa a, contraditoriamente, tratar da realidade¹. A docuficção de Man of Aran não chega a provocar, durante a projeção, qualquer questionamento de se o que estamos vendo na tela é espontâneo (não sendo encenado, apenas registrado como relato filmado pelas lentes da câmera) ou ficcional. Se é documentário ou feeria não importa diante do poder das imagens do diretor. Após o texto de introdução ficamos completamente absortos, admirados e surpreendidos com os enquadramentos e os movimentos de câmera utilizados, que sempre reforçam a escala daquilo que estamos vendo e a relação contrastante do modo de vida do povo de Aran com o da civilização industrial do ocidente.

Os personagens vivem num lugar singularíssimo do mundo. A ilha formada inteiramente por rochas, sem solo e suscetível a alagamento, dado o nível do mar, poderia ser filmada pelo diretor de modo a chocar o espectador, mas não é isso que Flaherty faz — em nenhum de seus filmes ele busca o choque, na verdade. Não há interesse pelo estranhamento do espectador — pretensiosamente ocidental — com relação àquele espaço; no lugar disso, R. F. vai ao encontro da admiração a partir da observação. Utilizando do artifício sonoro para corroborar com este aspecto, durante as tomadas de ondas gigantes colidindo violentamente com as colossais formações rochosas que compõem o solo infértil da ilha onde vive aquele povo, escutamos apenas a sonorização do movimento da maré. Sim, é uma sonorização para um forte movimento de massas d’água, mas não chega a assustar pela agressividade.

O autor deste documentário em questão é um dos cineastas que melhor utilizou do — à época — recém-nascido (com relação ao seu aspecto normativo na máquina de produção cultural do ocidente) artifício sonoro na história do cinema. Em Flaherty, imagem e som são tratados de maneira individual. Muitas vezes estaremos ouvindo apenas uma dublagem — similar às que faziam nos faroestes spaghetti — para preencher o vácuo de algum diálogo que acontece em determinada cena ou, então, estaremos ouvindo uma sonorização ‘genérica’ daquilo que estamos vendo. Os quadros de seus filmes se movimentam de modo a se manifestar isoladamente do áudio, como fenômenos se desenvolvendo paralelamente. Imagem e som tem uma relação complementar, apesar desta acontecer de maneira indireta.

O melhor exemplo para demonstrar essa relação imagética-sonora é uma das cenas de Moana. Num plano detalhe, vemos objetos sendo colocados sobre pedras, mas só é possível saber do que se trata quando a sonoridade do fogo consegue ser escutada. Subsequentemente à imagem e ao som da brasa, o intertítulo anuncia que são bananas verdes que ali estão sendo manuseadas. Lembrando das cenas anteriores, agora sabemos que está sendo preparado uma espécie de banquete para o ritual comum naquela tribo de Samoa. O cineasta nos deu tempo o suficiente para apreciar todo o cuidado daquele preparo. Apesar de, inicialmente, não sabermos do que se tratava, foi possível apreciar a movimentação acontecida no quadro, para posteriormente a montagem ‘impusesse’ um sentido dramático à tomada.

Inesperado que um documentarista americano tivesse um olhar tão austero sob o desconhecido, ainda mais quando o desconhecido em questão são outros povos e outras culturas. É tal passividade no olhar do autor que resulta na contemplação pelo mundo expressada em sua obra. Por exemplo, em Man of Aran não é construída uma relação antagônica entre aquele povoado e os tubarões que caçam para sobreviver; o realizador não busca — nem pretende — justificar moralmente aquele ato, como uma forma de esclarecer para o público a integridade do povoado. Flaherty faz seu filme com mão leve, deixa que as imagens se desenrolem como fenômenos isolados, deixa que o espectador ou julgue ou contemple aquilo que está sendo projetado à sua frente, jamais abrindo mão de filmar as ações ou os cenários como algo belo e digno de enlevação.

Até mesmo o perigo da morte e as condições desfavoráveis à subsistência do homem em Aran não deixam de ser elegantes quando filmadas pelo cineasta. Em sua decupagem, aqui, nunca faz a câmera sair da posição de observador, e faz isso até mesmo com os close-ups. A pesca do tubarão-elefante é filmada de maneira distanciada do núcleo da ação; vemos tanto o barco dos homens à distância e o predador, enquanto está vivo, só pode ser visto refratado, submerso na água.

O filme é, de certa maneira, um documentário — uma docuficção, na verdade — de montagem. O realismo pelo qual André Bazin advoga em Montagem proibida pode parecer que é negado aqui, mas discordo deste ponto de vista. O papel de juntar os fenômenos isolados da diegese numa mesma realidade — a qual o filme pretende constituir primeiramente para substituir a realidade do espectador — é performado pelo som de Man of Aran. Dentre diálogos indistintos — os quais, particularmente, consegui identificar pouquíssimo do que estava sendo dito, apenas nas partes em que o inglês era mais identificável — e sons de mar, a enlevação por aquela realidade já acontece desde o início, desde que Flaherty atesta que seu filme foi feito como um documentário.

Tal contemplação pelo trabalho daquele povo — que, apesar de viver em condições menos favoráveis que seus vizinhos irlandeses, vivem em maior harmonia com o ambiente que estes — é tamanha a ponto de ser comparável com a que Walsh, por exemplo, demonstrava ter com relação aos personagens de John Wayne em seus faroestes mais explicitamente relacionados com o desbravamento do oeste, como The Big Trail (1930). O esforço de Breck Coleman para levar uma família às partes dos Estados Unidos ainda não ocupadas pelos anglo-saxões é digno de admiração desde os intertítulos iniciais, que apresentam o contexto do filme; e assim acontece neste filme de Flaherty. Na marcha para o oeste, o galã branco — sempre aparecendo em quadro nitidamente e muito bem exposto — guia o povo na direção da concretização de seu destino manifesto; na sobrevivência em Aran, a união das famílias insulanas entre si e com o local que habitam guia a bela sobrevivência destes diante de gigantescos empecilhos.

Além do trabalho dos habitantes da ilha pela sobrevivência, sua harmonia com Aran e com tudo aquilo que nela construíram. Citando novamente a cena da pesca do tubarão-elefante, o diretor nos informa, em algum momento, que a gordura do animal é utilizada nas velas que clareiam as casas das famílias que ali habitam; velas essas que já havíamos visto até mesmo em plano-detalhe, mas que, após tal informação ser dada por meio de um intertítulo, veremos novamente e passaremos a atribuir outro significado àquela iluminação. A montagem que Bazin havia advogado a favor pôde, em Man of Aran, ser feita de outra maneira. O realismo aqui dispõe — não de maneira total, claro — de planos gerais, longas sequências contínuas e altas profundidades de campo para somar os elementos diegéticos isolados. Flaherty inverte essa lógica de montagem e, ainda, acrescenta a ela um papel para o artifício sonoro e para os intertítulos.

Notas:

¹ Acredito que a leitura dos textos de Bazin seja suficiente para entender a dialética do cinema de farsa e do cinema realista. Ver os ensaios Ontologia da imagem fotográfica e O mito do cinema total.

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