O Assassino (2023), de David Fincher | Crítica

Cinema Marginal
10 min readJan 29, 2024

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A OBSOLESCÊNCIA DE UMA ESTÉTICA

por Daniel Dantas

Nota: Segundo e último texto de uma sequência de ensaios críticos tratando da obra de David Fincher. À luz do recente lançamento de O Assassino (2023), algumas questões que os autores da página já haviam cansado de debater entre si foram evidenciadas, motivando a escrita de tal sequência.

“Como uma dialética pode estar atrasada? Pela condição única de ser o outro nome de uma consciência (…) não há, no sentido estrito, dialética da consciência que resulte, pela virtude de suas próprias contradições, na própria realidade… Pois o acesso da consciência ao real não se dá pelo seu desenvolvimento interno, mas pela descoberta radical do outro além de si.”¹
Louis Althusser

Uma das obras “pós-modernas” que melhor tem êxito em utilizar de sua estética para estabelecer uma relação mais forte com o real, com o mundo fora da tela do filme. Peguemos em retrospecto a filmografia do diretor a partir de Se7en (1995) até O Assassino (2023), quais tendências são notáveis? Fincher não foge de suas raízes em nenhum momento; é americano e, partindo dessa condição, não se importa em seguir a propensão do cinema contemporâneo como sendo um grande parque de diversões — tendência criticada superficialmente pela atual “velha guarda” hollywoodiana, mas iniciada justamente e principalmente por esta², com seus medalhões Scorsese, Spielberg, Coppola e companhia. Espetacularizar alguns dos notáveis casos da mídia imperialista é característica notável no conjunto de filmes de autoria de D. F.; Zodíaco e A Rede Social fazem isso mais diretamente por se tratarem de histórias reais, mas a tentativa do autor de comentar o real é facilmente notável em enredos ficcionais — ou Clube da Luta não é, até hoje, uma das produções mais comentadas pelo público geral?

Tendo surgido no mercado de publicidade, não é de se espantar o aspecto unidirecional de David Fincher. Seus longas têm, intrinsecamente, caráter de diversão — e muitas vezes unicamente isso. É muito difícil e até improvável que a mise en scène do pretenso esteta venha a questionar algo em algum momento. O que enfraquece as impressões que tenho ao assistir boa parte de seus filmes é a falha e forçada tentativa do autor de estimular o espectador a todo o momento em suas ‘perfeitas’ cenas, tão sublimemente adornadas que a decupagem corre contra o tempo da montagem para conseguir dar conta de mostrar todos os mínimos detalhes (vide primeira cena de Garota Exemplar, em que Ben Affleck e Carrie Coon dialogam).

Tive uma impressão diferente da que acabo de descrever ao assistir o mais recente Fincher. O capítulo um de O Assassino é impecável, digno de alçar o diretor pela primeira vez em todos os seus anos de carreira à condição de esteta que sempre pareceu buscar. A locução apática de Fassbender junto ao seu também apático protagonista direciona o tom do longa para um niilismo inócuo à superestrutura, fenômeno muito mais específico ao capitalismo imperialista nas formas em que se apresenta na atualidade do que outrora. Diria, sem duvidar uma vez sequer, que a cereja do bolo ornamental que D. F. nos preparou nesta introdução está na trilha sonora. Em contraste ao tédio, ao silêncio, à inércia da realidade do filme, estão a guitarra do genial Johnny Marr, a lírica e o canto impecável de Steven Morrissey em colaboração com outros dois smiths não menos importantes e não menos geniais, Andy Rourke — que infelizmente nos deixou neste ano — e Mike Joyce. Somando ao conjunto da obra não apenas o valor sensorial, mas também o valor simbólico carregado pelo finado grupo de rock nos dias de hoje.

O protagonista impassível, observador, pragmático, imperturbável, que vive abstido de seu papel social numa realidade em que a esmagadora maioria dos fenômenos parecem ser abruptos e demasiado fugazes; foi esse o contexto que encontrei para, pela primeira vez, de fato ficar positivamente impressionado com o trabalho estético do diretor. Seus adornos cenográficos não mais aparentam ser truques; dessa vez somos estimulados a percebê-los como o que há de maior valor nas cenas, naquele universo morto.

O tratamento dado ao clímax do primeiro capítulo também é digno de ser elogiado. Todos os mantras de Fassbender expondo seu pragmatismo, sua imperturbabilidade, sua apatia, sua vontade de onipotência por meio da obsessão por preparação, planejamento e ordenação; toda essa pose de infalibilidade vai por água abaixo por conta de um simples gesto. Bastou um passo inesperado para o lado direito para que a garota não nomeada fizesse o assassino de aluguel lidar com diversas ingratas consequências de seu erro.

A neurose do criminoso é notavelmente expressada pelas locuções de Michael Fassbender — já aclamadas anteriormente nesse texto. Delas, a necessidade evidente de alguém que se encontra abdicado da sociedade em tocar o real. A postura pragmática assumida de “lutar apenas a batalha em que se é pago para lutar” é de quem assumidamente tem uma posição irrisória dentro de um caótico universo — postura equivalente nos tempos atuais à postura dos protagonistas de Clube da Luta (1999), nada hostil ao tal universo, apenas uma tentativa de negar o ser. Não conseguindo por si mesmo atribuir valor ao que o circunda, o personagem passa a confiar no juízo da meretriz universal, passa a ser tão servo do alcoviteiro universal entre homens e nações³ — o dinheiro — quanto aqueles a quem se refere pelo termo normies.

Encenando a insignificância do sujeito em sua realidade e também sua alienação — que é também auto-infligida pela conduta derrotista do protagonista –, o diretor nos coloca primeiramente diante da fugacidade da grande parte dos fenômenos da vida do matador de aluguel. Seus locais de morada, seus nomes, seus carros, as placas de seus carros, as relações que estabelece, etc.. Acredito que após o primeiro capítulo posso atestar que o único aspecto que me chamou a atenção foi a necessidade que a causalidade trouxe a Fassbender de falar frente a frente com outras pessoas, muitas vezes em diálogos que consumiam minutos da projeção. Tais cenas causam um estranhamento positivo em quem as assiste, pois o filme não acena em momento algum para uma conduta mais empática por parte do personagem principal, nem por parte daqueles com quem este tem contato (ainda que um contato frio) causado por conveniência ou por breve necessidade. Ainda que recluso e rejeitando a sociabilidade, o assassino teve que lidar com pessoas. Notem o tamanho da pedra que a mulher não nomeada — interpretada por Monique Ganderton — colocou no caminho deste homem.

Fincher é feliz ao inserir personalidades secundárias tão presumidamente interessantes quanto a principal. Claro, nunca chegamos a conhecer de fato suas verdadeiras potências, mas tais personagens são interessantes justamente por isso. A conduta negativa e alienante de Fassbender nunca nos deixa entrar em contato com o universo que o circunda, e o diretor segue a mesma tendência em sua encenação. Coerente.

Do par romântico do matador de aluguel nota-se um pretenso companheirismo, do taxista nota-se pretensa honestidade, de Dolores nota-se pretenso sacrifício inocente, de Hodges nota-se pretenso frio profissionalismo. Apenas em cenas com dois coadjuvantes chegamos a entrar em contato profundo com as potências de tais figuras: os personagens de Tilda Swinton e Sala Baker, o primeiro dotado de um poder persuasivo que torna bastante tensa a cena no restaurante e o segundo dotado de força física suficientemente elevada para nos trazer uma grande sequência de ação.

Contente com os justos elogios que teci ao diretor de O Assassino, prossigamos a discutir os problemas da obra. Não, D. F. não foge de suas raízes e nem as renega em nenhum momento de sua filmografia, porém são essas mesmas raízes que fazem com que o que adjetivei no parágrafo anterior como sendo coerente se degenere em tautológico, um vício notável no cinema contemporâneo⁴.

Durante grande parte da projeção, estamos em movimento junto a Fassbender, indo de um país a outro, de um lugar a outro. Daí a fugacidade já percebida no primeiro capítulo do filme repetida exaustivamente. Várias situações similares, mudando apenas as aparências, mas com significados bastantes semelhantes. O que se deixa notar é uma nova tentativa de Fincher de tocar o real — como seu protagonista o faz, mas de maneira diferente –, tal como tentou frequentemente ao longo de sua filmografia. De certa maneira, é repetir a conduta do matador de aluguel, porém não havendo mulheres-não-nomeadas para dar passos inesperados para a direita, seu empecilho em fazer com que O Assassino tenha um valor além de entretenimento reside na estética empregada, que é tão cara ao autor do filme.

Diante de uma obra que se relaciona tão fortemente consigo mesma, que se fecha tanto dentro das próprias questões (há um problema central a ser resolvido, a encenação enfatiza isso e é totalmente direcionada na obstinação do protagonista para concluir sua tarefa), que valor de conhecimento há de subsistir na memória do espectador? De conhecimento, nenhum valor subsiste, pois não há estranhamento e distanciamento o suficiente na estética de Fincher que deixe isso acontecer. Por outro lado, o valor de entretenimento ou de contemplação exercem sua primazia sobre o objetivo que motiva a existência do filme — aí residem meus elogios a este.

Passados trintas minutos de sessão, o que é possível enxergar é o autor forçando sua estética a fazer aquilo que é ontologicamente incapaz. Benjamin, em sua síntese do teatro épico, atestava: “As formas do teatro épico correspondem às novas formas técnicas, o cinema e o rádio”⁵. A questão é: da mesma forma que o teatro épico de Brecht estava para o teatro aristotélico, a estética pós-brechtiana do cinema moderno está para a estética idealista desta arte são sistemas com suas limitações específicas.

O desprazer das uma hora e meia restantes após o fim do capítulo um de O Assassino reside aí. Findada a introdução, nos vemos diante de uma atmosfera ilusionística que esteve conosco desde os primeiros segundos de projeção. Apesar da afinidade com o contexto global fora da tela do filme, ainda é ilusão, representação. O que se pode tirar disso fica entre a contemplação e a rejeição, mas jamais a identificação de um contexto que ao fim se revela como condição real.

Digo tautológico porque é uma observação já encenada repetida diversas vezes semelhantemente. É quase pela força que D. F. tenta escrever suas impressões acerca da conjuntura atual na mente de seu espectador, tentando provar, em todas as seções seguintes, que o universo que ele mesmo comanda segue as regras que ele mesmo define.

“O palco naturalista, longe de ser tribuna, é totalmente ilusionístico. Sua consciência de ser teatro não pode frutificar, ela deve ser reprimida, como é inevitável em todo palco dinâmico, para que ele possa dedicar-se, sem qualquer desvio, a seu objetivo central: retratar a realidade. Em contraste, o teatro épico conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse processo, e não no começo, que aparecem as “condições”. Elas não são trazidas para o espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro, o teatro épico presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática. E no indivíduo que se assombra que o interesse desperta; só nele se encontra o interesse em sua forma originária. […]

Em consequência, o teatro épico não reproduz condições, mas as descobre.”⁵

Sendo assim, o tempo é o fator principal que degenera o coerente de O Assassino em tautológico. É pela encenação arrogante do autor, que a todo tempo busca reforçar o mesmo tópico, que preserva-se apenas o valor de diversão do longa. Sim, Fincher, notamos a virtualização do capital nos últimos anos, notamos a chamada globalização pós Segunda Guerra, notamos e vivemos o domínio da superestrutura pelas big techs, mas qual conclusão você tira disso? Vimos os gadgets utilizados por Fassbender, o estilo de vida quase hedonista — característico desses novos bilionários de big tech — do CEO alvo, mas o que fazer com isso a não ser notar a repetição de padrões que já vemos na realidade, apreciar a plasticidade de sua encenação ou rejeitá-la por não achar prazerosa?

Notas do autor:

¹ Frase retirada indiretamente de Louis Althusser, citada por Jean Narboni em discussão sobre montagem. Por ter sido citado no debate seguinte — sobre espaço — , tendo a crer que a fonte desta frase é Por Marx.

² “E o cinema? Meu querido senhor. Está morto há muito tempo. Nós levamos Méliès, Stroheim e Eisenstein ao suicídio. Nós pagamos alguns alemães para criar a Universal, para inventar Mickey Mouse. E atualmente estamos tendo Auschwitz reconstruído por Steven Spielberg.” — Jean-Luc Godard, História(s) do Cinema (1988).

³ “[…] Shakespeare ressalta particularmente duas propriedades do dinheiro:

(1) ele é a divindade visível, a transformação de todas as qualidades humanas e naturais em seus antônimos, a confusão e inversão universal das coisas; ele converte a incompatibilidade em fraternidade;

(2) ele é a meretriz universal, o alcoviteiro universal entre homens e nações.” — Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos.

⁴ Vide The Batman (2022), para citar o exemplo de filme tautológico que primeiro me vem a mente, por ter sido lançado num tempo recente.

⁵ Walter Benjamin, Magia e Técnica, Arte e Política.

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