Eisenstein, Griffith, o épico e o clássico

Os dois filmes de Eisenstein sobre o Tsar Ivan IV marcam sua chegada à forma clássica do cinema — Por Daniel Fonseca

Cinema Marginal
7 min readAug 13, 2021

Se é possível dizer que David L. Wark Griffith deu vida ao cinema como uma arte propriamente dita — com suas características singulares e intrínsecas — durante as sequências de O Nascimento de uma Nação (1915), Serguei Mikhailovitch Eisenstein elevou ainda mais o status da sétima arte ao representar, em seus filmes de juventude (A Greve e O Encouraçado Potemkin, ambos de 1925), o marxismo revolucionário soviético na forma de planos. A questão que gostaria de tratar aqui é de como estes dois autores — importantíssimos para a história da arte — abriram as portas tanto para o cinema clássico como para os filmes épicos de fantasia, trilhando caminhos semelhantes em épocas diferentes.

O Nascimento — já em 1915 — consagrava a narrativa clássica em uma forma quase primitiva do cinema. Griffith, para encenar a Guerra de Secessão, partira este conflito em diversos núcleos. Duas famílias são dispostas em diferentes partes do mapa da recente América, ficando em posições contrárias durante o conflito. Apesar de não ser tão claro narrativamente, o diretor consegue deixar o filme empolgante a cada simples plano que se sucede na tela. Quase sempre acompanhamos trechos que apelam para o subjetivo e para a emoção, planos que — apesar de propagarem a normalização e a banalização de um discurso abominável — chegam até o subjetivo em forma de uma história comum, um mito sobre a criação de um país, forma usada para contar diversas histórias desde a Antiguidade. Esse particionamento das contradições do enredo torna tudo mais “palatável”. Tudo é tão absurdo que só parece mera história, mera ficção. Um mundo único que foi criado ali pelo diretor.

5 anos depois, o cineasta responsável por uma das propagandas reacionárias de maior sucesso da história (obviamente, isso aqui não é um elogio) faz o melodramático Way Down East (1920), marcando ali, de fato, sua chegada ao cinema clássico. Nesse romance não foi necessário, por parte de David, uma encenação subdividida em pequenos microcosmos para desenvolver o enredo de modo distribuído, tudo começara a acontecer simultaneamente. Enquanto o diretor articula uma crítica a valores hedonistas alheios aos ideais cristãos e estadunidenses, o casal protagonista busca fazer que seja possível sua união diante de determinados obstáculos. Essa união de forma e conteúdo, não apenas para contar uma história, mas para articular uma ideia, por mais que tenha acontecido n’O Nascimento, aqui se faz notar de maneira mais sutil. De certo modo, todos os filmes de David são “filmes-propaganda”, mas foi diante disso que o realizador elevou e revelou as possibilidades da linguagem cinematográfica.

Cena de Way Down East

Paralelamente à filmagem das produções de D.W.G., na recente União Socialista das Repúblicas Soviéticas, do teatro operário surgia o jovem Eisenstein. Creio não haver obra mais complexa, completa e científica do que a obra marxista e marxiana. Ainda assim, não parece ter sido difícil para Serguei levar para as telas os ideais leninistas. Desde um manual de organização do trabalhador (A Greve, 1925) à representação de uma manifestação popular e uma condenação do aparato repressor estatal (O Encouraçado Potemkin, 1925) e à uma grande celebração de aniversário dos 10 anos bem-sucedida Revolução Russa (Outubro, 1927), o diretor soviético já havia explorado meandros tão profundos do pensamento proletário que seria bom que os principais partidos ditos comunistas no Brasil tivessem este nível de compreensão da ideologia revolucionária.

Storyboard de Eisenstein para sequência de O Encouraçado Potemkin (1925), encontrado em seu livro A Forma do Filme

Após um filme mais propagandístico para o campesinato soviético (A Linha Geral, 1929), alguns curtas-metragens e outros diversos projetos inacabados, Eisenstein lança Alexander Nevsky (1938), filme que ainda que retrate ideais do pensamento mais desenvolvido pelo Pai dos Povos, não tem a mesma agressividade que os longas que o antecederam. Aqui, em minha opinião, o soviético largou mão quase que totalmente do construtivismo, passando a buscar apelos mais clássicos, assim como Griffith — autor que Mikhailovitch já havia manifestado sua admiração outrora — havia feito em seu melodrama citado anteriormente neste texto.

Nikolai Cherkasov interpretando o Tsar Ivan IV em filme de Eisenstein

Chegando em Ivan, o Terrível: Parte 1 (1944), Eisenstein não liga tanto para articular em seus planos os ideais leninistas. Afinal, sob o comando de J.V. Stálin, a U.R.S.S. já estava consolidada e obtinha vitórias gigantescas para o povo trabalhador. Neste contexto, Serguei filma a primeira parte de Ivan como um filme de cerimônias, e aqui, para mim está seu maior apelo clássico. A partir do rebuscamento característico da vida no Antigo Regime, diante do feudalismo e da alimentação mística trazida pela religião e pela Igreja, vemos um longa construído a partir de duas ou três grandes sequências ritualísticas. A questão é que, para além disso, o subtexto vai sendo articulado através de cortes não tão explícitos e pequenos gestos dos atores, tudo enquanto nos é mostrado um carnavalesco evento diante dos nossos olhos. A partir dessa estética é que são encenados os conflitos acontecidos no enredo sobre a ordem, inclusive, ordem seria uma boa palavra para definir a primeira parte de Ivan. Tudo aqui aparenta, à primeira vista, estar arranjado; do cenário às atuações, a tensão acontece num crescendo que não deixa a história muito clara narrativamente, mas impacta os sentidos de forma singular. Contraditório à baixa profundidade de campo escolhida pelo diretor, sabemos que há algo por trás acontecendo, um golpe, um conflito político.

Na Parte 2 acho necessário dizer que notei, no máximo, duas locações. O grande castelo em que Ivan governa a Rússia num “tsarismo paralelo” evidencia uma redução do motor da história de modo consciente feito por Serguei de modo extremamente avesso ao que havia sido feito em Outubro. Em Ivan, o grande palco das mudanças que irão acometer a população no futuro é o castelo, e autoproclamado tsar de toda a Rússia é a força motriz da história. Isso é importante de ser notado pois o povo não é mais o grande protagonista de um filme de S.E. como feito em seus “filmes sem protagonista”, agora todo o discurso é focado na persona autocrática d’O Terrível.

Cena de Ivan, O Terrível — Parte 2

O último filme do autor não é apenas um grande filme, mas é também um resgate de um experimentalismo perdido desde 1929. Sequências coloridas são inseridas no meio do longa de modo vanguardista, exaltando a questão cerimonial do longa e levando o espectador a um transe indesejado — visto que queremos ver como nosso anti-herói irá lidar com o planejado golpe para tirar-lhe o poder — mas muitíssimo expressivo e cativante. Outrossim, o realizador — muito pela sua valorização inicial da montagem como o elemento expressivo principal da sétima arte — ainda quebra noções de tempo e de espaço, principalmente durante estas sequências finais. Um personagem que caminha pelos corredores do castelo pode estar inicialmente cercado por outros cortesãos, mas após uma simples mudança no ponto de vista da câmera este passa a estar sozinho. Tudo vai tornando a cena final da conspiração cada vez mais engasgada para quem a assiste.

Diante de toda a grandiosidade da obra de D.W. Griffith e de Serguei M. Eisenstein, me pego pensando em como estes autores abriram caminho para as obras que lançam no mainstream hoje, tanto no cinema como na televisão. O modo do sucesso de bilheteria Vingadores: Ultimato (2019) é montado já evidencia tudo isso. Assim como em O Nascimento de uma Nação, tudo aqui gira em torno do conflito final. Partições de uma mesma história com grandes núcleos vão se desenvolvendo de modo a levar ao público uma celebração do universo cinematográfico dos quadrinhos, consagrada através da batalha final. O que quero deixar claro aqui não é que o último filme dos Vingadores “repetiu” Griffith, mas sim que o diretor estadunidense abriu caminho, através de sua atitude vanguardista tanto perante a montagem quanto perante aos outros elementos expressivos do cinema, para uma antiga forma de se contar histórias se encaixar na linguagem audiovisual.¹

Sketch de Eisenstein para a não finalizada parte 3 de Ivan, O Terrível. O tsar implora por misericórdia no Último Julgamento

Para encenar outro mito de fundação de um país, S.E. também se apoia na fantasia para criar uma atmosfera própria, porém, dessa vez totalmente centralizada numa persona e em um único núcleo de enredo. Paralelamente, forma e conteúdo vão se desenvolvendo em perfeita harmonia, de modo que uma dá permissão para que a outra aconteça. Na contemporaneidade vemos isso em duas grandes produções de alto orçamento: Guerra dos Tronos e O Senhor dos Anéis. O que me motiva a fazer essa comparação é uma percepção evolutiva do cinema, que começara apenas como mero registro do cotidiano consegue se igualar às outras artes a ponto de incorporar a forma clássica, a forma que começa com Griffith na obra do Nascimento, e continua viva até hoje; na forma arrastada de contar histórias através de épicos herdada da articulação de ideias na mise en scène até hoje o mainstream é atraído por esse tipo de obra, por essa feição cinematográfica.

¹ “Era a montagem, cujos fundamentos haviam sido colocados pela cultura cinematográfica norte-americana, mas cujo uso total, completo e consciente e cujo reconhecimento foi obtido por nossos filmes. A montagem, cujo nascimento estará para sempre ligado ao nome de Griffith. Montagem, que desempenhou um papel vital no trabalho criativo de Griffith e levou-o a seus mais gloriosos sucessos”- Trecho escrito por Eisenstein em seu livro A Forma do Filme, p. 183

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