Breves anotações sobre Jacques Tati | Comentário

Cinema Marginal
5 min readMar 29, 2023

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por Daniel Dantas

Playtime — Tempo de Diversão (1967)

“Foi no ambiente extremamente familiar, caseiro, que o cinema revelou um universo insólito, único, da mesma forma que através de um olhar lúdico sobre o que é mais mundanamente material, terrestre e prosaico em qualquer cotidiano o cinema comunicou o que nunca havia sido identificado.”
Valeska G. Silva
, As alegrias não riem, as tristezas não choram

Jacques Tati é o mais baziniano dentre os autores do cânone do teórico francês que vi até então. Em defesa do realismo — no sentido de verossímil, não no sentido griffitiano –, Bazin manifesta argumentos cujos quais pode-se enxergar claros exemplos em PlayTime, Trafic, Mon Oncle, etc. As técnicas de montagem proibidas pelo crítico angevino jamais são utilizadas nas obras anteriormente citadas; em todas elas há a notoriedade da observação meticulosa e rígida que o diretor faz dos fenômenos tanto naturais quanto sociais.

É uma filmografia cuja principal marca é a busca da beleza onde esta não se deixa evidenciar tão facilmente. Decerto que as longas sequências retratando as trivialidades da vida metropolitana — apesar de sua impressionante plasticidade — têm seu impacto neutralizado após determinado tempo, mas servem para expor que a diegese segue a mesma física que determina a vida do espectador. Física essa que pode ser utilizada sem distorções para provocar o efeito cômico — vide uma cena de Mon Oncle na qual Monsieur Hulot, para fazer um passarinho parar de entoar seu canto matinal, reflete a luz solar incidente no vidro de sua janela diretamente para a visão da ave –, mas que Tati também a distorce para criar metáforas cujas quais o poder está justamente em serem meras sugestões do que não acontece na realidade, seja por impossibilidade natural, seja por convenção social. Nesse último caso, a mímica do mundo real adquire o caráter de ironia abrangente de todos os aspectos que regem a realidade ficcional na qual vive o personagem interpretado pelo próprio diretor.

Meu Tio (1958)

Embasar toda uma realidade ficcional — utilizando, nessa direção, as longas sequências de planos bem abertos, filmados com alta profundidade de campo — através de técnicas menos impositoras, por um lado, faz com que haja uma determinada desorientação quanto às ações performadas dentro do quadro, mas, por outro, faz com que tal realidade se faça completa em si mesma e substitua, sem muitas dificuldades — afinal imita bastante o mundo material na qual os filmes de Tati são exibidos –, a realidade do espectador. É nessa substituição, a partir da observação ‘livre’, que quem assiste a Les vacances de Monsieur Hulot, por exemplo, se encontrará, após findar a projeção, reconciliado com seu mundo.

As Férias do Sr. Hulot (1953)

Até mesmo quando está inserido no controlado e cinzento ambiente de PlayTime, é possível observar a beleza nos lugares mais improváveis, diferentemente do que acontece, por exemplo, com as obras de Chaplin — outro comediante do cinema que, para o espectador pessimista, pode corroborar com algum aspecto fatalista que tenha preconcebido antes de ver, por exemplo, Tempos Modernos ou Monsieur Verdoux. Em espaços que divergem da conduta natural de Monsieur Hulot, este ainda age da maneira que lhe é mais espontânea, mas de modo que diverge da atuação que Tramp, personagem de Chaplin, e que Paleface, personagem de Keaton, têm em seus espaços. Quanto a O Vagabundo (Chaplin), este age de modo a sempre ir de encontro à ordenação opressora e frenética da idade moderna; quanto a Cara Pálida (Keaton), se sente diminuído com relação ao contexto no qual está inserido, até chegar no ponto em que essa questão fica insustentável, que é quando passa a agir como artífice imperfeito da própria realidade. É nessa questão que mora a diferença de Hulot para os dois outros protagonistas mais importantes da história do cinema de comédia. O personagem interpretado por Jacques Tati, apesar de ser, sim, alienado do regimento externo a ele, não busca romper com tal situação; ao ingênuo senhor de elevada estatura, mais interessa vagar pelo seu mundo de maneira despretensiosa, não buscando encontrar o propósito ou a beleza, mas acabando por encontrá-los fortuitamente.

“Mas a ingenuidade de Hulot é reveladora: a menor distância entre dois pontos é aquela percorrida por ele, não pela burocracia e tecnologia que se contorcem ao delírio, exigindo um imenso esforço para ir à sala ao lado. Ele é, surpreendentemente, uma figura socrática, fazendo com as condições físicas da representação o que Sócrates faz com as ideias. Ele é a ferramenta utilizada para observar os diversos graus de ignorância na sociedade, e o estudo da ignorância é o início do conhecimento. Hulot é, afinal, o perfeito ignorante: maleável, humilde, silencioso. É por esta via que a personagem aos poucos deixa de ser uma excentricidade para tornar-se a própria representação da totalidade.”
Lucas Baptista, A república de Jacques Tati

“O herói da commedia dell’arte representa uma essência cômica, sua função é clara e sempre igual a si mesma. Já o que é característico do M. Hulot, ao contrário, parece ser o fato dele não ousar existir inteiramente. Ele é uma veleidade ambulante, uma discrição de ser! Ele eleva a timidez à altura de um princípio ontológico! Mas, naturalmente, essa leveza do toque de M. Hulot sobre o mundo será precisamente a causa de todas as catástrofes, pois nunca se aplica conforme as regras das conveniências e da eficácia social. M. Hulot é o gênio da inoportunidade. Isso não quer dizer, no entanto, que ele seja desastrado e desajeitado. Muito pelo contrário, M. Hulot é pura graça, é o Anjo Extravagante, e a desordem que ele introduz é a da ternura e da liberdade.”
André Bazin, Monsieur Hulot e o tempo

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