Batman (2022), de Matt Reeves | Crítica

Cinema Marginal
5 min readMar 8, 2022

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Por Almir Basilio

Quando se trata de filmes de heróis, é muito fácil só jogar pra galera. É muito fácil, tão fácil que se tornou regra, terceirizar a responsabilidade em relação aos méritos e defeitos de um filme, reduzindo-o tanto a fatores alheios a qualquer tipo de valor cinematográfico que se torna quase impossível avaliar o trabalho do diretor. Não se trata (da falta) de autoria, mas, diante das obrigações de encaixar uma obra em universo compartilhado ou podá-la segundo o fanservice, os próprios filmes aceitam se restringir a debates que os negam enquanto cinema e os afirmam enquanto um mero suporte pra ilustrar histórias — incluindo com frequência histórias que nem são parte do filme e só vão aparecer em um próximo lançamento, mas que roubam cena como se a empolgação e a antecipação do prazer que geram não fossem alheias ao que o filme de fato constrói. Isso vai desde o MCU até a Liga da Justiça do Zack Snyder, mas não é algo que torne essas obras menores, afinal elas podem ser plenamente bem sucedidas em seus contidos objetivos. A questão é que, ao aceitarem ser peças menores de um universo pré-estabelecido pelo estúdio ou pré-determinado pelo público, entre prelúdios de algum evento mais importante (caso da maioria do MCU) e produtos cuspidos e escarrados das expectativas criadas (caso de Liga da Justiça), terceirizam a apreciação do filme pra algo além dele, como se o impacto imediato ao assistir não bastasse.

Mais difícil é fazer o que Batman faz. Um filme que quer se sustentar sozinho, que se justifica só por ele mesmo, cujo impacto imediato é o essencial; que tenta arrastar aqueles que não estavam predispostos a gostar do filme, ou que não tinham alguma relação emocional prévia com o que é retratado. Esse é o patamar de pretensão em que Batman se coloca — não necessariamente superior, mas alternativo em relação ao panorama descrito no parágrafo anterior. Um patamar no qual ser bem sucedido demanda tanto um cuidado especial na hora de filmar quanto uma compreensão de que os vários aspectos indissociáveis da linguagem devem funcionar em consonância para que, afinal, aquele impacto desejado ocorra — e felizmente, Reeves tem ambos.

Basta lembrar das primeiras “aparições” do Batman, aquelas em que o personagem fica invisível em meio a becos escuros ou espaços aparentemente vazios. Nesses momentos, não há “progressão da história” alguma; revelar o novo traje também não pode ser visto como sua função; nem há planos que funcionem sozinhos por serem visualmente estonteantes; mesmo a narração em primeira pessoa do Bruce (o roteiro) não pode ser destacada das imagens sem perder algo de seu significado. Afinal, esse significado só existe enquanto um sentimento provocado por todos esses componentes associados. Não faz sentido isolar qualquer um deles, sejam as marcantes palavras ditas por Bruce ou a adequadíssima trilha de Michael Giacchino, muito menos explicá-los para algo além do principal: o tesão que é ser manipulado por tudo isso junto a tal ponto que só de olhar pra uma tela permeada pela sombra você entende tudo. Depois disso, quando o Batman, enfim, aparece iluminado o suficiente pra o vermos de fato (e isso serve também pra aparição do batmóvel, só pra citar outro exemplo), o sentimento que brota não provém da simples satisfação daquela expectativa de encontrar um velho conhecido, algo que mesmo a mais porca apresentação seria capaz de produzir e seria suficiente pra provocar gritos na plateia — pelo contrário: é o sentimento que o desenvolvimento da própria cena fez surgir e progressivamente atiçou, como se tivéssemos sido apresentados a um personagem que nunca ouvimos falar antes, mas que apenas bastou essa cena para nos fazer compreendê-lo profundamente. E lógico, nada disso seria possível sem um estilo calibrado pra tanto.

Talvez tenha sido justamente o que faltou aos filmes anteriores do personagem: uma regularidade de estilo que não limitasse de alguma forma o efeito do todo pra privilegiar algum fetiche, nem reduzisse suas possibilidades visuais. No caso do Nolan, era o fetiche pelo realismo, ao qual se opunha de forma paradoxal o desenvolvimento arbitrário da investigação no Cavaleiro das Trevas e anulava qualquer emoção além do êxtase pela ação. Não que o Batman do Reeves não seja realista em grande medida — ele é, no geral, uma narrativa tão pé no chão quanto o filme do Nolan, mas que abraça com vontade as implicações de se ter como protagonista um bilionário traumatizado fantasiado de morcego, e o faz com tal equilíbrio que evita que o filme se torne caricato. Ao seu realismo, à questão social de Gotham, à existência de Bruce Wayne como ser humano, se sobrepõe a existência do Batman como entidade e a contaminação que seu espírito atormentado exerce sobre a representação da realidade que o envolve. Quando Reeves, nas poucas vezes em que enquadra Bruce, o faz como se o personagem fosse uma aberração fora de lugar, é a pura demonstração de que, nesse filme, a ênfase está mais em transmitir esse espírito irracional de alguns personagens do que em uma inserção forçada destes em um “mundo real”.

Pouco importa essa inserção, ainda que esse mundo real, no qual se desenvolvem os dramas da Selina, da polícia e da máfia, exista plenamente no filme e oriente, aos moldes de Se7en, grande parte da narrativa. Esta não chega ser tão estilizada quanto o visual, e Reeves preserva alguma autonomia ao não tentar emular o método de Fincher na hora de filmar, deixando a influência dele mais restrita ao enredo do que qualquer outro aspecto. Se alguém esperava um primor do autorismo, Reeves opera mais dentro do convencional. Seu diferencial é ter domínio do ofício e filmar com gosto, sem ter que prestar contas a ninguém por suas decisões criativas e com alguma liberdade pra brincar com as possibilidades da linguagem no processo. Coisa incomum no gênero, e o resultado final é mais do que suficiente pra demonstrar o valor de se fazer um filme pensando só no filme.

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