Amores Expressos (1994), de Wong Kar-Wai | Crítica

Cinema Marginal
3 min readJun 8, 2021

por Almir Basílio

Os personagens se apegam a cada leseira que é satisfatório ver que o filme representa essa condição brincando com a estética do jeito que pode. Cada personagem tem a sua cruzada particular, no geral querendo desapegar de alguém que ficou no passado, e nisso entram numa melancolia irracional na qual ficam presos. Esse estado emocional que os mantém desconectados da realidade é sentido quando a câmera os acompanha livremente, sem se prender a uma distância ou ângulo padronizados, nem a uma posição que sempre os deixe plenamente visíveis. Às vezes eles ficam meio escondidos atrás de uma parede ou de um vidro embaçado, ou ofuscados por uma placa luminosa, menos ajustados àqueles cenários do que normalmente estariam. A passagem de tempo, também, não é sentida por eles de um jeito normal, como reforça a recorrente queda de quadros por segundo e os vários cortes aparentemente desordenados.

Cada um fica imerso na sua própria realidade individual que não necessariamente faz sentido pra quem vê de fora. Ficam apegados a algo específico que funciona como a música pra doidinha da lanchonete, que, como ela mesma diz, ajuda a não ter que pensar. Quem mais destoa entre os quatro protagonistas é a criminosa da peruca loura, cujo único traço claro é a instabilidade característica do seu ofício — até que o primeiro policial tromba com ela por acaso. Ela aparece sem contexto e desaparece sem explicações, abrindo pouco ou nenhum espaço pra entrarem na sua realidade individual, ainda que o policial tente. A ele só é legada a perspectiva de algo diferente do seu estado emocional anterior, que a princípio parecia eterno. E isso é suficiente: depois, esses dois somem pra não aparecer mais pelo resto do filme. A segunda metade tem novos protagonistas, e um segundo policial afligido por uma obsessão com o passado parecida com a do primeiro. Tal como na primeira parte, os universos particulares na cabeça de cada um não nos aparecem de modo tão permanente e estável como os personagens acreditam ser, e aos poucos eles vão assimilando isso, que o filme indica desde o começo.

Fora a excentricidade das obsessões (comprar abacaxi enlatado que vence no dia que venceria o romance; manter hábitos em casa achando que a namorada vai aparecer), que já seriam o bastante pra dar um ar cômico ao coração partido dos personagens, a questão é que Wong Kar Wai não entra na deles. O que eles sentem e interpretam como se fosse o fim do mundo nos aparece como uma melancolia quase inocente. A estética é tão encantadora (às vezes lúdica, como a trilha sonora reforça — e não por acaso a personagem mais engraçada vive ouvindo música) que não nos permite afundar na tristeza que pra eles parece não acabar, mas, pelo contrário, indica a saída que eles mesmos virão a encontrar ao cruzar com outras pessoas. Esse processo se revela aos poucos, e portanto não é tão instantâneo a ponto de fazer duvidar da relevância dos sentimentos apresentados. Estes nunca deixam de estar em evidência, só vão assumindo outro caráter com o passar do tempo. A liberdade que a câmera assume se mantém, mas a desconexão com a realidade por ela provocada deixa de ser associada a uma recusa dos personagens em aceitar os acontecimentos e torna-se o que pareceu ao público desde o começo: uma percepção individual que, pra quem a possui, é tão relevante quanto fugaz.

Acesse a crítica no Letterboxd

--

--