A Romance of Happy Valley (1919), de D. W. Griffith | Crítica

Cinema Marginal
8 min readJan 31, 2022

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Por Daniel Dantas

Griffith em toda sua autoridade

Griffith encena a metafísica em parábola moralista cristã a partir de seus traços mais autorais.

[…] É essa unidade que Griffith vai mudar transformando-a em uma dualidade. Conhecemos a lenda: em um plano geral, Griffith emocionou-se pela expressão dolorosa de uma de suas atrizes; ele avançou a câmera e fez um close dela. Assim teria nascido a primeira utilização do close para fins de expressão dramática. Descoberta que revolucionaria toda a linguagem cinematográfica. Pois, a partir do momento em que autorizam a intervenção da câmera no espetáculo, o dogma da sua fixidez é abolido. É a porta aberta a todas as possibilidades: travelling, panorâmica, mudança de ângulos, etc. Mas é também a intrusão de uma nova dualidade, que ainda continua atual, entre cinema-decupagem e cinema-montagem.¹

Recuperemos de Jean Douchet o conceito de cinema-decupagem, utilizado para falar sobre o cinema de D. W. Griffith. Em um extremo temos o cinema-montagem, o cinema atrativo e construtivista de Eisenstein, que evocava a intervenção — a participação — do espectador na obra através de provocações explícitas. A correlação entre planos sempre acabava “impondo” uma ideia de forma frontal, geralmente sendo uma comparação, um paralelo. Agora, noutro extremo, temos o cinema-decupagem, o cinema de David Llewelyn Wark Griffith, predecessor do cinema clássico. O realizador americano, desde que experimentava e desbravava o potencial da linguagem cinematográfica na Biograph Company, sempre deu uma maior atenção à decupagem de seus planos. Tanto que, foi a partir da exploração deste conceito — o da montagem paralela (concretizado pela decupagem) — que deu vida não só ao épico cinematográfico como também deu vida ao cinema como arte em si, com suas características próprias e únicas, quando dirigiu O Nascimento de uma Nação (1915). N’O Nascimento, o paralelismo entre as cenas mantém uma tensão comum entre diferentes núcleos narrativos, que se retroalimentam para criar — para além do espetáculo visual — a encenação de uma trama moralista que é, sem sombra de dúvidas, um mito de criação, tal como aqueles que passavam de geração em geração nas civilizações que nos precederam.

Jean-Luc Godard considerava que não havia elogio maior à montagem do que quando esta é confundida com a decupagem³, e acho que este é bem o caso dos filmes de Griffith após o nascimento do cinema. A partir do épico de 1915, D. W. calcou as bases do melodrama. Do seu mito de criação, demonstrou uma compreensão acertadíssima da narrativa dos clássicos (Aristóteles, etc.) e, como é de praxe para chegar em toda obra-prima griffithiana, experimentações foram feitas e lançadas para exibição até que a obra final seja completamente lapidada. Home, Sweet Home (1914) e Aos Corações do Mundo (1918) são feios porque são rascunhos de Way Down East, mas vão mostrando, aos poucos, mais e mais valores e técnicas sendo acrisoladas para chegarem à perfeição.

De D. W. G. nasceu a sétima arte, dos seus close-ups e da sua montagem paralela surgiram os primeiros épicos e melodramas, além de seus épicos melodramáticos. Também me arrisco a dizer que com o diretor americano também nasceu a metafísica no cinema, e — para mim — não é nada difícil considerá-lo como primeiro explorador desta articulação, e é em A Romance of Happy Valley que ela primeiro dá as caras.

Como de praxe, o diretor estabelece as bases de sua trama nos primeiros minutos de tela do longa. Diferentes planos-gerais são acompanhados por intertítulos que mostram a paz da vida pacata na pequena vila na qual viviam um desprezível número de habitantes. Neste início, Griffith nos dá uma prévia da bela encenação que viria a coroar Way Down East como um dos principais melodramas da história. Sua musa (Lillian Gish) nos é apresentada por meio do já conhecido close-up. Griffith fragmenta a cena que nos apresenta o romance da trama direcionando nosso olhar para os pequenos gestos de amor demonstrados pela country girl (talvez True Heart Susie tenha nascido aqui) e pelo country boy. O diálogo inocente entre o par é acompanhado por preconceitos sobre a vida urbana que reforçam o tom cômico que a presença de Gish traz para a obra. Sua movimentação em cena é sempre confusa e não aparenta ser racional, é esse o aspecto que aqui engrandece seu trabalho.

Das toneladas de emoção provocadas pela fragmentação das cenas dos encontros entre Gish e Harron², o protagonista desafia um dos valores responsáveis pela manutenção da paz na aldeia: o patriarcalismo. “Dando para trás”, decide ir para Nova Iorque para tentar seguir o Sonho Americano, e é a partir dessa cisão de valores (que pertencem igualmente à superestrutura imperialista), provocadora do distanciamento físico tanto entre o casal quanto entre o personagem de Robert e sua família, que surge a fé. O único elemento que mantém os dois núcleos narrativos juntos.

Do vão gerado neste ponto de inflexão narrativo não há um rompimento completo e radical, resta o sentimento que os personagens sentem uns pelos outros. O amor que Griffith foi tão bem-sucedido em encenar, tanto neste longa quanto em produções anteriores e posteriores, aqui é demonstrado em forma de fé, e esta fé é traduzida cinematograficamente como montagem paralela. O diretor americano, encenando diferentes situações em diferentes espaços (representando valores opostos de uma mesma origem), realiza comparações entre os sentimentos de cada um dos dois núcleos narrativos de modo a explicitar o quão semelhantes estes são.

É da crença na realização do Sonho, da crença na família e da crença no retorno que a trama se move de modo correlato no campo e na cidade. Tudo é metafísica, tudo é moralismo. A partir de sua característica encenação naturalista/realista (por motivos óbvios, muito presente em O Nascimento de uma Nação) a moral cristã (ou o próprio Griffith) julga personagens secundários que cederam às tentações. O aparecimento de Judas Iscariotes no campo, concomitantemente ao aparecimento das meretrizes na cidade, são seduções pecaminosas⁴ muito tentadoras, sendo filmadas para serem com tal (o apelo e a presença do físico de Bertram Grassby, a movimentação dançante e sedutora das garotas, etc.), para se assimilarem, de certo modo, às tentações de Jesus Cristo no deserto da Judeia.

Os que afrouxam a corda moral, os que deixam de relembrar o porquê de existirem e estarem naquele local (os infiéis, teoricamente), todos eles têm sua presença em cena desnaturada. Passam a sorrir em demasia — recurso que o diretor usara muito para evocar uma condenação a um macabro hedonismo –, passam a se movimentar de modo animalesco, etc. O moralismo cristão de Griffith (e da Bíblia, consequentemente) pega impulso no naturalismo de determinadas atuações para expressar uma rejeição completa a determinados seres abjetos⁵.

Durante um certo período de tempo após O Nascimento, o cinema de D. W. foi sendo levado num piloto automático (ou em experimentações que não parecem tão vanguardistas) de épico e melodrama. Aos Corações do Mundo é o expoente mais notável disso. Seu cinema-decupagem não mais se confundia com a montagem, tudo acabava aparentando ser um grande compilado — ou um grande resumo — de grandes acontecimentos dramáticos. Quando as toneladas de emoções apareciam na tela, estas eram dissolvidas em diversos eventos da trama contados de forma apressada, porém, graficamente apelativas (reconheço este mérito). Esta inércia é rompida em Happy Valley, quando Griffith utiliza do paralelismo na decupagem para preencher o vão deixado pelo distanciamento físico dos núcleos dramáticos, característica já falada anteriormente neste texto.

Aqui, a montagem paralela e os enquadramentos do diretor americano recuperam méritos de curtas anteriores seus. Novamente, Griffith havia lapidado seu talento. A manutenção do suspense se une aos dúbios enquadramentos e às semelhantes aparências entre objetos, cenas e situações para dar a impressão de que algo realista está sendo encenado, mas algo levemente estranho. Gera uma sensação que se assemelha a um dèja-vu, algo que — aqui — prefiro chamar de milagre, uma manifestação metafísica na cena que refaz e recompensa os personagens pela sua integridade e pela sua persistência.⁶

É da fé em algo que sequer está no extracampo que as personagens superam suas dificuldades, e isso, sem dúvida, é metafísica. Claro, o embasamento nas memórias, por um lado, respaldam a resistência do casal às dificuldades, mas por outro lado, estas mesmas lembranças são descreditadas quando é necessário a tomada de qualquer decisão mais certeira na trama. De certa forma, David G. faz algo que, em tempos contemporâneos, é feito por M. Night Shyamalan. Quando dizem todas aquelas palavras de ordem de que em A Dama na Água (2006) o indiano crê na fé como força restauradora (etc.) acredito que a percepção dos admiradores desta obra coincida com a que tive aqui com relação ao filme de 1919. Os espaços vazios que sugerem o surgimento de maiores conflitos dramáticos são preenchidos pela crença, e as possíveis contradições que deles surgiriam são descartados devido à conduta íntegra do protagonista.

O cinema-decupagem de D. W. G. — aqui — vai além do paralelismo dramático. Este evoca a metafísica, que se junta à atuação bela de Gish e Harron e à atuação desnaturada e animalesca de outros personagens secundários para encenar da forma mais acurada e certeira possível o moralismo presente numa parábola bíblica. Se o realizador, no início deste longa, questiona, a partir de intertítulos, se é necessário que toda história tenha uma moral, isto se configura apenas como uma pergunta retórica ao final do filme. A citação “The Lord will provide” (algo como “Deus proverá”), repetida no último terço do drama pela mãe do personagem de Harron, resume de modo conciso a moral deste melodrama griffithiano.

¹ Jean-Luc Godard talvez diria que foi neste momento [o momento da invenção do close-up] que D. W. Griffith se tornou inimigo declarado do teatro.

² ”Há mais vívido elogio do que o do público geral quando, acertadamente, a confunde com a decupagem?“ — Jean-Luc Godard; “Montage, mon beau souci”, Cahiers du Cinéma N°65, dezembro de 1956, p. 30–31.

³ Griffith já havia provado que é um grande romântico nas cenas iniciais do melodramático Aos Corações do Mundo (1918).

⁴ Essas seduções já estavam presentes desde o início no próprio campo. Uma espécie de Éden com a presença de Lúcifer, sendo os valores moralmente reprováveis incorporados pelos personagens mais desfavorecidos, cujo comportamento é encenado da forma mais desnaturada possível.

⁵ A bem-sucedida utilização deste recurso em O Nascimento de uma Nação vem da uma experimentação em The Avenging Conscience: or ‘Thou Shalt Not Kill’ (1914) e Home, Sweet Home (1914), longas muito inspirados nos contemporâneos filmes do cinema italiano, como L’Inferno (1911).

⁶ Tais méritos citados neste parágrafo podem ser encontrados em produções anteriores do diretor como The Lonedale Operator (1911) e An Unseen Enemy (1912). É de se apreciar quando a decupagem do diretor sai do piloto automático que outrora eclipsou seu talento (filmes eram extremamente rápidos, recortados e elípticos) para realmente articular algo.

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