A Roda (1923), de Abel Gance | Crítica

Cinema Marginal
9 min readMay 2, 2022

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por Daniel Dantas

A Roda (1923), de Abel Gance

A SEGUNDA VERTIGEM

É comum que a cinefilia que sofreu influência direta dos cahiers elevar Vertigo (1958) ao cânone da arte cinematográfica. Isso é tanto que, durante boa parte de meu estudo de cinema, falei de forma anedótica que o cinema havia começado e terminado com este filme de Hitchcock, e que não haveria qualquer possibilidade da linguagem ser explorada além do que foi feito pelo diretor inglês. A influência de tal obra é inegável tanto para o cinema dos contemporâneos do aclamado realizador britânico, como para os autores, teóricos e artistas que sucederam seu estilo, seu formalismo e que defenderam sua obra. Foi só a partir do estudo da fase muda do cinema que notei que a impressão que tinha de Um Corpo que Cai ser um filme sui generis, único tanto em seu estilo quanto em sua narrativa, era falsa — assim como a impressão que tinha de que A. H. não poderia ter tantas influências formalistas para fazer o que fez, dentro do contexto do alvorecer da sétima arte.

Tantos outros Vertigos existiram antes do de Hitchcock quanto outros existiram após o dele. Um filme sobre a perseguição de uma ideia, encenada a partir de motifs e de apelos gráficos, engendrando uma passagem da fantasia à verossimilhança — e vice-versa –, desorientando e atormentando o espectador, que agora se encontra diante de uma insanidade em forma de planos, que dá ênfase à forma, ao estilo, à arquitetura de seus espaços, etc. Poderia estar me referindo, novamente, a A Mulher que Viveu Duas Vezes — título do filme de Scottie e Madeleine no português do Velho Mundo –, mas estou me dirigindo a dois filmes da fase muda do cinema: Phantom (1922), de F. W. Murnau, e La Roue (1923), de Abel Gance. Hei de comentar — e elogiar bastante — a obra do diretor membro da vanguarda francesa neste texto. Apesar de A Roda ter méritos suficientes para ser comparado apenas a si mesmo, é importante traçar paralelos com os dois outros vertiginosos longa-metragens, tanto como maneira de expressar a sanação de uma curiosidade que a mim pertencia, como forma de incentivar o estudo da filmografia deste diretor.

Phantom (1922), de F. W. Murnau

Tanto a primeira quanto a segunda vertigem cinematográfica — respectivamente, Phantom e La Roue — partilham da busca por uma ideia do passado, se aproximando daquilo que Rohmer chamara de platonismo¹. Seguindo a característica humanista de Gance — de filmar e amalgamar o belo e o feio, o pacífico e o belicioso, o bom e o mau dentro de uma mesma diegese, buscando filmar esta união a partir de sua detalhada decupagem –, Sísifo se apaixona pela sua filha adotiva Norma, que havia criado juntamente ao seu filho biológico mais velho, Elie. Se em Eu Acuso (1919) os planos detalhe do diretor e seus close ups, apesar de “expressivos”, davam a impressão de cansar o espectador numa busca excessiva pela demonstração — algo que poderia até ser chamado de imposição — do contraste entre o amor e a guerra durante o filme, em A Roda estes são melhor aproveitados, quase sempre utilizados para “impor” os motifs que carregam o drama. A roda girando, o trem andando nos trilhos da ferrovia, a flor desabrochando… Todos os símbolos deste longa se assemelham tanto geométricamente em sua forma quanto fisicamente em seu movimento. Suas aparições na tela, apesar de, em certo ponto — novamente –, exaustarem a sugestão que fazem, remetem ao transe que é assistir a uma obra de Gance. A insanidade de acusar e apontar o dedo para culpar terceiros fazia com que Jean Diaz, protagonista de J’accuse, escrevesse excessivamente a única coisa que conseguia fazer durante seu delírio; a vertigem de Scottie, o cabelo de Carlotta Valdes, a ideia que tinha de Madeleine, os movimentos de câmera à esquerda e à direita²; a carruagem e a rua por onde Lorenz Lubota passara quando viu Schwabe, etc. Todos esses filmes de vertigem tem em comum — além de de outras semelhanças que não são produtivas de serem esmiuçadas aqui — a utilização desse tipo de símbolo, de sua geometria e de sua encenação em movimento para colocar o público numa condição semelhante à do protagonista, a condição de insânia causada por uma ideia escrita na mente por uma impressão do passado.

Eu Acuso (1919), de Abel Gance

O longo tempo de duração de La Roue, juntamente aos cortes para um trilho de trem se movimentando, faz com que percebamos que, assim como o veículo ferroviário controlado por si, o maquinista — cujo nome remete ao mais astuto dos mortais — só consegue se movimentar em uma direção. Está preso por um determinismo que não o permite realizar curvas, pode apenas maltratar sua filha adotiva como forma de evitar a ideia de estar apaixonado por ela, ao mesmo tempo em que a resistência física a esse amor romântico faz com que Sísifo persiga mais e mais a ideia de Norma em sua cabeça — nas cenas mais surreais, que certamente se passam dentro da mente do protagonista, o trem em movimento sempre está indo em direção à figura feminina idealizada –, tanto que é justamente quando o protagonista se isola que este passa a pensar mais e mais nela, havendo diversos flashbacks encenados de modo tão belo quanto Hitchcock viria a fazer posteriormente.

Se, durante certo tempo, recusei em boa parte a designação de F. W. Murnau como um cineasta expressionista, atribuir a Abel Gance o título de impressionista me parece justo o suficiente para endossar isso neste texto. Para citar indiretamente meu comparsa Almir Basílio, em um texto no qual este desencoraja a discussão sobre o termo “pós-terror”³, a utilização de símbolos e motifs de Gance em A Roda são o total oposto do que acontece no cinema dito arthouse contemporâneo. Se o chamo de impressionista, percebo o valor em sua encenação simbólica — algo feito desde sua representação da música e da poesia, concretizadas através de planos, e não de intertítulos (no contexto do cinema mudo), respectivamente em La dixième symphonie (1918) e J’accuse (1919) — e seu mérito tanto para a excitação sensorial do público quanto para a movimentação do drama o qual está encenando. Diversos são os exemplos, apenas neste longa-metragem, que provam o virtuosismo do realizador francês em gravar impressões na mente do espectador: o já citado trem em movimento sobre um trilho (filmado num plano que, cada vez mais, vai se estreitando até que sobre apenas o trilho em movimento) de ferrovia; a máscara de fuligem que cegava Sísifo e sua posterior cegueira durante sua velhice; o nome do protagonista, sempre oprimido pela sua própria mente e por outras condições objetivas; etc.. Numa crítica decadente deste filme, tentaríamos meramente analisá-lo por aspectos que a ele não pertencem — assim como também não nos pertenceram durante a projeção — através de uma investida à decifração dos signos de A Roda, mas não é isso que farei aqui, pois não é isso que o longa de A. G. merece. À esta obra reservo o aplauso direcionado à seu autor por, finalmente — diante de tantos outros longas pseudo simbólicos –, me bonificar com a encenação de figuras com significados que não me cansam a vista nem a cabeça, figuras que excitam meus cinco sentidos sem provocar demasiada racionalização, algo que atestaria atestando o esgotamento destes signos e, provocaria um cansativo descontentamento durante algumas das cinco horas de projeção.

A Roda (1923), de Abel Gance

Tal maestria nesta obra de Gance só é possível, em boa parte, porque o realizador francês sempre foi um mestre de ritmo. Como viria a declarar em 1923 — ano de lançamento deste longa que aqui está sendo comentado por mim –, “O cinema é a música da luz”⁴, e a valorização do arranjo dos planos, de sua cadência e de seu compasso é a primeira qualidade a impressionar em La dixième symphonie, e em A Roda não é diferente. Cada plano dura o tempo necessário para que não se esgotem os símbolos, as imagens não são postas em movimento apenas pela inércia da obrigação de finalizar a história do roteiro, etc. As quase sete horas de duração não pesam na mente — como as quase três horas de J’accuse — porque a cada minuto uma nova impressão é gravada em nossa memória. É realmente como se estivéssemos ouvindo Beethoven — por exemplo –, tal é o esmero do diretor em intercalar seus planos e suas sequências. O cinema mudo nada deve à palavra falada, e talvez a maior prova disso seja este vanguardista francês. Seu cinema não dispõe de som, mas dispõe de sonoridade — tal como o cinema de Méliès e de Griffith — e, se considerarmos o ritmo como a condição ontológica da arte musical, temos La Roue, portanto, como uma obra musical. Ouvimos o trem, os sonhos de Sísifo, a paz em seu exílio; tudo isso é possível pois a imagem é uma linguagem universal, não sendo necessário haver fisicamente a manifestação de ondas mecânicas para percebermos o som. Basta a filmagem da fusão do gelo que circundava o cadáver de Elie para ouvirmos o gotejamento e intuirmos a passagem do inverno. Griffith dizia: “As imagens constituem o primeiro meio do qual o homem se serviu para transcrever seu pensamento. Encontramos esses pensamentos primitivos gravados na pedra, nas paredes de grutas ou nas encostas de altas falésias. É tão fácil para um Finlandês quanto para um Turco compreender a imagem de um cavalo. A imagem é o símbolo universal, e uma imagem que se mexe, uma linguagem universal.”⁵, e Abel parece compreender isso muito bem ao fazer com que a ideia, o som e a imagem andem juntas, seguindo o mesmo compasso.

A Roda (1923), de Abel Gance

“Como o reflexo do fogo no cobre é mais belo do que o fogo, mais bela, no gelo, a imagem de uma montanha, também a imagem da vida é mais bela na tela do que a vida ela mesma.”, declarou o autor de La Roue no ano de lançamento deste longa. É essa estima que o francês tem pela forma que o permite amalgamar as características humanas mais terríveis, presentes na vida material, ao ambiente e aos sentimentos mais belos e puros. O exercício cansativo — que foi minha única experiência negativa com J’accuse, antes de ver o filme que aqui comento — da busca incessante pelo belo diante de um cenário de opressão aqui é corrigido. Muitas vezes não é sequer necessário cortar uma sequência ou invocar um plano detalhe ou um close-up para nos aproximarmos da obra, basta alongar um plano e deixá-lo tomar seu rumo; algo muito utilizado pelo diretor na primeira metade do filme. Não é necessário que algo exista para ser esbelto e formoso, basta sua sugestão ser bem feita. E isso é tanto que Sísifo só consegue corrigir seu amor e lidar com a ideia de Norma quando este, em sua velhice, perde a visão. Sem saber que sua filha adotiva ali estava para lhe fazer companhia, o ex-maquinista se permitiu amá-la.

Em A Roda, a ideia sempre está lá, não importa por quanto tempo tentamos evitá-la, tentando buscar outras “interpretações” ou tentando atribuí-la a outro significado. Ela sempre estará causando uma nova impressão e sendo gravada em nossa memória. Nem mesmo a cegueira e a surdez podem torná-la sem brilho e muda, o que restou a Sísifo foi aceitar a pedra que, sem querer, carregou durante boa parte de sua vida, assim permitindo amá-la.

Notas:

¹ “L’ hélice et l’idée”, por Éric Rohmer, Cahiers du Cinéma N°93, março de 1959.

² “À esquerda e à direita”, por Miguel Fernandes da revista Imagem e Palavra.

³ “A discussão natimorta sobre o termo “pós-terror”: trocando uma fórmula por outra”, por Almir Basílio.

⁴ “O cinema é a música da luz”, por Abel Gance.

⁵ “Importância do cinema”, por D. W. Griffith.

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