A discussão natimorta sobre o termo “pós-terror”: trocando uma fórmula por outra

Cinema Marginal
8 min readApr 15, 2022

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por Almir Basílio

Lamb (2021)

A aberração chamada “pós-terror” aparece pela primeira vez em um infame artigo do The Guardian, de 2017¹. A aberração em questão não são os filmes assim categorizados (a princípio), mas sim esse termo que conseguiu a proeza de estigmatizar até mesmo os bons filmes que se encaixam nessa definição. Segundo o texto, ela engloba aqueles lançamentos que contrariam as “regras e códigos” do terror, com propostas supostamente mais autorais, desvinculadas dos clichês do gênero e que, por isso, podem ser mais profundas e abarcar questões mais sérias. A distinção proposta no artigo, portanto, não é entre um gênero ultrapassado que nunca havia alcançado tal patamar de profundidade e uma tendência ímpar e inovadora que o faz; tampouco é entre um gênero descartável por inteiro e uma estética que finalmente o legitima (de modo que o prefixo “pós-” é impreciso em relação à ideia do texto, já que até mesmo na parte mais convencional do terror o autor encontra algum valor por “nos reconectar com nossos medos primitivos”². Mais adequado seria algo como terror arthouse); sua distinção essencial, na verdade, sem a qual nenhum argumento do texto faria sentido, é o suposto antagonismo entre uma parte da produção do terror, marcada por clichês e convenções, característica esta que a torna intrinsecamente pobre em suas possibilidades, e essa vigorosa corrente que o termo busca caracterizar, livre das normas associadas ao cinema comercial. Os equívocos que o termo expressa em relação ao terror em específico não merecem mais do que ser ignorados, eles são só uma consequência de algo bem pior: uma compreensão vulgar, nociva, sobre o cinema como um todo, que tende a exaltar a priori filmes com determinado padrão estético sem perceber que no ato está apenas legitimando uma outra fórmula, que mesmo parecendo vanguardista pode gerar produtos muito mais padronizados e pobres do que aquelas obras que rechaça por abertamente seguirem as convenções à risca.

Tentar rebater a lógica do termo sob outro viés além desse, que foca no lado mais geral do problema, é cair na discussão natimorta que o texto induz, e acabaria girando apenas em torno da legitimidade ou não do terror, da novidade ou não da estética em questão, do desrespeito implícito ao gênero… enfim, questões secundárias. Nada disso é novo e nem existe separadamente daquela concepção vulgar de cinema: é pura reverberação do tradicional antagonismo estabelecido entre cinema de massa e cinema de arte — como se os dois fossem inconciliáveis; como se a estética do dito cinema de arte também não pudesse ser absorvida e replicada por produtores com o mesmo objetivo comercial do cinema de massa, com a única particularidade de vendê-la para um nicho menor; e, olhando pelo outro lado, como se a estética e as fórmulas do “cinema de massa” não pudessem ser pervertidas por diretores talentosos que tornem seu impacto muito mais avassalador do que aquele de filmes direcionados a públicos restritos.

À parte desse antagonismo e da hierarquização que ele implica (os principais problemas do termo), é natural e coerente fazer distinções a fim de explicar tendências emergentes no cinema e entender semelhanças e diferenças entre obras que nelas se inserem. Nesse sentido, apesar da infeliz designação escolhida, o texto do The Guardian é certeiro em detectar um estilo comum a diversos lançamentos de meados da década passada em diante:

“Há luto, culpa, arrependimento e paranoia. (…) E, além disso, há simplesmente a escuridão, a qual o filme se aproveita enormemente em termos visuais. É incrível o quão desconcertante pode ser apenas acompanhar alguém com uma lanterna vagando pela noite escura adentro.” ³

It Comes at Night (2017). Título em português: Ao Cair da Noite

Esse trecho se refere a It Comes at Night (2017), mas poderia também se referir a outros dois filmes citados no texto, tamanha a similaridade em termos de estilo: A Bruxa (2015) e A Ghost Story (2017); além de outros que, assim como os três anteriores, são produzidos pela A24: Hereditário (2018), Midsommar (2019), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2019), Saint Maud (2019) e o mais recente Lamb (2021). Logo de cara, nas primeiras cenas, fica claríssimo que entre todos esses há algo em comum. Mesmo a luz do sol constante de Midsommar não o diferencia tanto de It Comes at Night com suas cenas noturnas: ambos, assim como todos os citados, tratam-se de “filmes de arte”. Os temas sérios são apresentados através de planos longos, às vezes longuíssimos, geralmente com a câmera parada; a sonoplastia também é muito familiar, com sua música ambiente que tende a se confundir com os ruídos constantes que devem traduzir a tensão psicológica das situações; além da disposição de símbolos bem simbólicos repletos de simbolismo nos planos, por vezes tão exageradamente requintados que o valor do símbolo se esgota na impressão intelectual que gera⁴; excetuando o desafio à interpretação pura e simples que os exageros desse último ponto instiga, nenhum desses aspectos de estilo é necessariamente abominável, mas todos eles, de fato, gritam uma certa pretensão que os coloca mais próximos de filmes do Apichatpong (proximidade que o artigo destaca, e pode ser ampliada para os filmes de festival no geral) do que de filmes de terror como O Homem Invisível (2020) e as criações gostosas do James Wan. A questão é que essa pretensão nada diz sobre qualidade (ou profundidade): ela pode tanto partir de um diretor sem talento se escorando na tendência do momento pra disfarçar sua mediocridade (seguindo uma fórmula que, pra sua sorte, não é vista como uma fórmula, e até é confundida com autorismo), quanto de um bom cineasta (que pode, eventualmente, justificar sua pretensão ao convertê-la em um bom filme, e assimilar um estilo sem reproduzí-lo de forma mecânica) — só assistindo aos filmes pra descobrir quando se trata do primeiro caso ou do segundo, e, de preferência, ignorando os materiais de divulgação quase idênticos e a recepção também idêntica, irritante, que a maioria desses filmes costumam ter. Efeito colateral desta última (o artigo de 2017 aqui comentado é um ótimo exemplo) é motivar em parte do público uma antipatia que o leva a cometer um erro similar ao de quem valoriza a priori algumas das características citadas nesse parágrafo: repudiar, a priori, as mesmas características.

The Witch (2015). Título em português: A Bruxa

No fim das contas, é difícil medir o estrago que essa definição “pós-terror” promoveu. Certamente, não foi tanto quanto pode dar a entender: como havia dito, é só um reflexo daquele modo generalizado de apreciar cinema que direciona o debate pra um poço sem fundo de discussões pobres, limitadas a contra-argumentos repetidos que rebatem argumentos sem fundamento.⁵ É o caso de quando alguém cede à tentação de responder àqueles que negam que clichês, regras, códigos, convenções, enfim, possam promover, sob determinadas abordagens, reflexões muito mais complexas do que aquelas promovidas pela mecânica rejeição de tais convenções. Esses que assim negam, tal como o comentador cultural do The Guardian, esquecem que sem uma reflexão sobre a forma cinematográfica qualquer outro tipo de representação dos ditos temas sérios e profundos que o filme tentar colocar em evidência vai se tornar vazia — sem falar que a própria reflexão sobre a forma pode ser tão relevante quanto quaisquer temas sociais ou metafísicos, que separados da primeira se tornam apenas decalque, mesmo que alguns destes filmes os ostentem como algo além disso.

Por último, vale dizer que toda a pobreza desse debate injustamente ofusca o competente trabalho feito por diretores promissores como Robert Eggers, que acabam colocados no mesmo balaio de diretores muito questionáveis como Ari Aster, como se por semelhanças de estilo o impacto final durante a exibição chegasse perto de ser o mesmo. Quanto aos filmes que mereciam não mais do que cair no esquecimento (vide Lamb, Midsommar, entre outros atentados), esses sim motivam respostas mais exaltadas, simplesmente porque alguém inventou de dizer que “Se há alguém levando o terror até novos domínios, são eles”⁶. Licença.

Midsommar (2019)

¹ How post-horror movies are taking over cinema, por Steve Rose (2017)

² O trecho completo do artigo citado em que essa ideia é exposta é o seguinte: “Sempre haverá um lugar pra filmes que nos reconectam com nossos medos primitivos e nos matam de susto. Mas quando o objetivo é abordar as grandes questões, as questões metafísicas, o panorama do terror corre o risco de ser limitado demais pra apresentar novas respostas — como uma religião decadente.”
Tradução livre de: “There will always be a place for movies that reacquaint us with our primal fears and frighten the bejesus out of us. But when it comes to tackling the big, metaphysical questions, the horror framework is in danger of being too rigid to come up with new answers — like a dying religion”

³ Tradução livre do seguinte trecho do artigo citado: “There is grief, guilt, regret and paranoia. (…) And then there’s simply the darkness, which the film’s visuals make tremendous use of. It’s amazing how unsettling it can be just watching someone with a lantern wandering around in the pitch black night.”

⁶ Tradução livre do seguinte trecho do artigo citado: “If anyone’s pushing horror into new realms, it’s them”

Notas do editor:

⁴ Num cinema narrativo que, no geral, é carregado pelas impressões que gera no espectador — se opondo a uma maior racionalização da articulação formal que acontece durante a projeção — não seria o aspecto de um símbolo se esgotar, passando a ser racionalizado durante o tempo de tela, o atestado final da incapacidade do diretor de deixar a subjetividade do público absorver sua pretensa obra? Para mim, sim. Para maior aprofundamento no tema, sugiro a leitura deste debate sobre O Fim dos Tempos (2008), atentando para o seguinte comentário, acerca da abertura do longa:

⁵ A discussão é, portanto, improdutiva. Sempre os mesmos espantalhos são rebatidos tanto por um lado quanto por outro. “Cinema de arte” sequer é uma terminologia correta e essa discussão, insistindo nesses dois lados de uma falsa dicotomia, desconsidera — majoritariamente — boa parte das condições materiais da produção cinematográfica na atualidade.

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